À procura da transgressão




"A transgressão das próprias convicções é essencial.
 É como no caso da lei, em que a legitimidade depende da hipótese de que, 
em dadas condições, a desobediência pode ser a melhor forma de cumpri-la".
(Nilton Bonder)


Nunca fumei maconha. Nunca experimentei cocaína. Não bebo. Onde você estava, então? Mas você não morava na 715 sul? Incrédulas as perguntas da nova amiga, nascida apenas um ano antes de mim e que também frequentou uma das quadras mais “barra-pesada” de Brasília naqueles longínquos anos da década de 1980.

A 715 sul era uma quadra-miscelânea, mosaico de uma cidade que se construiu do nada, reunindo gentes de todos os tipos, objetivos e origens. Suas casas geminadas não foram erguidas para abrigar funcionários do Banco do Brasil, como a vizinha 714. Ou os abastados servidores do Banco Central, a exemplo dos apartamentos da 314 sul. A 715, última quadra da Asa Sul (ou primeira, a depender do referencial) não era o que se classificava, nos primórdios da nova capital, uma quadra funcional. Esse termo morreu, como também o famigerado cidades-satélites, conforme Brasília perde a aura de maquete perfeitinha e desumanizada.

Irônico o conceito de funcionalidade hoje estar relacionado às questões psicossociais. A 715  sul realmente era daquelas comunidades disfuncionais. Ajuntamento classe-média-baixa com toda sorte de problemas gerados pela pouca escolaridade e pelos salários apertados dos chefes de família (muitas mães criavam os filhos sozinhas). 

Havia traficantes (naqueles tempos, bastante românticos). Os marmanjos vagabundos, um deles, inclusive, passava o dia de calção de banho mostrando seu físico bronzeado, como se fosse um surfista de Copacabana. Aliás, cariocas saudosos abundavam na 715 sul.

Havia michês (bem discretos) e gays idem. Porém, havia fofocas e todos acabavam sabendo quem fazia o quê com quem. 

Houve um pai de família abusivo morto a tiros dentro de casa pelo amante da esposa.

Havia os loucos por carros e os loucos de pedra. 

Havia um vizinho que parecia o Jesus Cristo eurocêntrico das folhinhas de calendário. Eu suspirava por ele.

Havia também pessoas talentosas que dançavam lindamente (infelizmente, não era eu). E algumas famílias mais ou menos óbvias com papai, mamãe e filhinhos. (infelizmente, não era a minha). Todavia, eram nessas que eu me incluía. Passava a ser mais uma filha à mesa do almoço. Os melhores amigos de infância estavam nesses lares onde tudo parecia correr bem. Até mordida pelo pastor-alemão de uma delas eu fui. Taí, havia pastores-alemães naquela quadra. E também dobermans (um deles vivia lá em casa).

Havia uma benzedeira e uma angolana (ou seria moçambicana) que fazia tortinhas de morango deliciosas para aumentar a renda familiar. Juntava tudo quanto é moeda para poder comprar ao menos uma por mês.

E há controvérsias se o temido Diabo Loiro morava na 715 sul, na 315 sul ou ali por perto. Chefiava uma gangue do mal: espancava sem dó o azarado da vez.

Houve jovens que morreram jovens em acidentes de carro (as pistas monumentais e vazias de Brasília nas décadas de 1970 eram um convite ao pega). Houve uma menina que morreu atropelada dentro da quadra. 

Dois bons amigos do meu irmão mais velho morreram de AIDS. 

E onde eu estava mesmo? Uma adolescente florescendo entre os tombos de árvores, quedas de bicicleta, brincadeiras de polícia e ladrão e de carniça, molhando o alpendre da casa dos vizinhos para brincar de escorregar. 

As perguntas da nova amiga me levou de volta àqueles dias lotados entre escola, aulas de inglês, de violão, balé… Desconfio que mamãe sabia o quanto a 715 sul podia ser perturbada e tentou, com enorme sacrifício econômico, me manter longe das tribos de “má influência”.

Caramba, fui uma nerd a sobreviver, incólume, aos desbundes de uma quadra em ebulição. Não transgredi nem quando cheguei à UnB. 

Passados muitos anos, um dos velhos amigos do meu irmão me revelou algo que explica a adolescência sem percalços que tive, ainda que fosse órfã de pai e andasse bastante solta e sozinha pela cidade:

 - O Edu nos proibia de chegar perto de você. Se a gente ousasse falar no seu nome, que você estava virando uma menina bonita, coisa e tal, ele se transformava, ficava bravo e falava: eu sei bem quem vocês são. A minha irmã não é para o bico de vocês, não. Nem tentem, eu tô avisando.

Ou seja: tinha um guarda-costas, um escudo protetor e não sabia. O irmão não demonstrava nada de seu zelo na frente da caçula. Nunca me tolheu, nunca pagou de pai pra cima de mim, muito pelo contrário. Ele sempre foi um espírito livre e esportivo e eu o admirava muito por isso: por vê-lo saudável enquanto vários amigos eram claramente viciados em tantas e variadas coisas entre o álcool, as drogas e a criminalidade.

Hoje eu tô a fim de fumar maconha para dormir. A insônia ainda vai me transformar na bad girl que sempre quis ser.


Comentários

  1. Vários pontos de identificação, mas um descompasso: a maconha, que fui experimentar com mais de 50 anos, não me faz dormir. Fico a contar estrelas.

    Ângela Sollberger

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  2. Lu querida, que ótimo. Mas pra insônia acho q maconha não ajuda não. Depois de algumas horas até pode ser...

    Beijos,

    Ana Cecília Tavares

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  3. Ótimo! KKK!

    Cynthia Chayb

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  4. Nossa, Luciana, muito legal! Também voltei mil anos no tempo, que pra mim foram outros. kkkk

    Andréa Torres

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  5. Um viva a Dona Natalina e seus suspiros divinos! Um viva a Dona Dina e seus banhos de arruda que muitas vezes tiraram o mau-olhado dos filhos de Dona Leila!
    Tive uma infância incrível na 715, não fui uma adolescente lá, mas fui criança, muito criança. Fiz vários amigos, inclusive uma melhor amiga ainda hj veio de lá ��
    Me lembro de vários dos relatos que você mencionou Lu.
    Um viva a 715 e suas loucuras! E põe loucura nisso.
    Acho que Alessandro Brandão vai amar esse texto.

    Juliana Cruz

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  6. KKK! Lu do meu coração, criativa como você é tenho certeza de que descobrirá suas transgressões. Pode começar comendo sobremesa antes do almoço. Beijos!

    Carmem Cecília

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  7. Legal voltar no tempo e relembrar dessa infância tão interessante que tivemos na saudosa 715!
    Quanto a cannabis eu recomendo!
    Não para dormir melhor, mas para viver melhor!
    Largamente receitada em diversos países.
    Estamos no caminho dessa evolução!

    Rodrigo Holanda

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  8. Muito bom, Lu.

    Renata Assumpção

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  9. Legal o texto. Também nunca fumei maconha, mas sempre tive vontade. Prossigo...

    André Luiz Alves

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  10. Liberaram o canabidiol hoje! Eu tenho uma amiga psicanalista que fuma para dormir. Ela recomenda! Rsss

    Bianca Duqueviz

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