Sagração




O sonho tinha banheira transbordando, barata e um bandido com a cara do Quasímodo da Disney que tentava agarrar o pescoço de Bernardo. Acordo e já é manhãzinha. Bênção. Parece que as palavras com B estão me perseguindo. É o Brasil de B., um pesadelo real. 

Os meninos estavam adiantados no café da manhã na cozinha. Fecharam todas as portas para não nos acordar. Que atitude madura e educada. Legal ver os filhos crescendo legais. Apresso-os mais um bocadinho (olha o B aí de novo. Morar no bloco B talvez explique). 

Eles se vão para a escola, a dupla uniformizada, sozinha dessa vez. Frida fica desenxabida sem o passeio matinal até o colégio. É uma lady de rotina. 

Preparo um chá-mate, o pão com aquela divina geleia caseira da Dorothé. Quase me esqueço que não é sábado. Dormir uma noite inteira para os insones é uma felicidade serena. 

Pego o celular e me deparo com um texto magistral de Juliana Otoni sobre um bebê (!) na minha timeline. A poesia da vida começa bem. 

Ligo a TV, mania de notícias. Confiro três minutos daquele “Primeiro Impacto” do SB(!!)T. Realmente impactante a virulência de um telejornal que só transmite horrores. Fiquei pensando, nesses 180 segundos, o que acontece no cérebro de gente que assiste àquilo todos os dias como combustível para a jornada diária. Elegem B. 

Sou obrigada a retornar para a Globo News e à sem-sal da Julia Duailibi. O tom de voz de menina comportada, de roupas comportadas e de cabelo comportado, me dão no saco. Mas ela é uma pessoa inteligente, reconheço. A apresentadora rola as manchetes dos jornais impressos no telão até parar numa foto sensacional da Folha de São Paulo. É a Cordilheira dos Andes ladeada por plantações de videiras, uma matéria sobre turismo em Mendoza/AR. 

Para quê… A recente viagem para lá e tudo o que ela me disse adentro causou forte comoção. Saudade, saudade, saudade (que delícia de sensação que não principia com b.). 

Desci para a garagem, liguei o rádio do carro e tocava uma canção com jeitão dos bolivianos (ai, o B. de novo) el condor pasa da feira da Torre de TV. Deixei fluir o ritmo e era lindo. Uma letra andina, gente! Minhas conexões tectônicas e eu, juntinho: 


“Viento, mese ese fuego, no lo abandone 
Nos deja entero 
Por el camino del viajero caminante soy, 
árbol nuevo de los Andes soy, aguacero soy 
Árbol te quiero entero no te abandonen las estaciones, 
pintan las suelas del viajero sabe a tierra y 
soy pasajero, llevo mi canción hacia el corazón 
Viento seca ese llanto ay mis hermanos se están 
matando, llévale el canto suave de la tierra y su latir 
Abre el suelo, déjalo salir, sanando el dolor 
Sanando el dolor 
Tierra mamá me enseña, cambian las flores, las estaciones, pintan las suelas del viajero, 
sabe a tierra y soy pasajero, de los Andes, soy aguacero soy” 


Sim, serei uma eterna passageira de los Andes. Ali me entendi, escondi o coração sob um dos centenários plátanos de outono e desapeguei dos tênis fofinhos e quentinhos de inverno, pois “meu lar é onde estão meus sapatos”. 

Deu vontade instantânea de volver a los diecisiete e ser uma daquelas três amigas de Buenos (!!!) Aires para as quais demos carona, a mochilar em êxtase juvenil pelas paisagens áridas e monumentais. 

A dupla que canta também é jovem e argentina: Perotá Chingò. Estilo musical que a amiga Dedeia me doutrinou hacia la infância e não me transmite nada além de bons sentimentos ancestrais. 

O ventinho frio de Brasília (!!!!) nesta hora matinal até consolou um pouco a alma da indígena hispânica falsificada. Vocês sabem que já me perguntaram se eu era do Paraguai porque me chamo Assunção? Não? Sim. 

Ri dessa lembrança bisonha (vaza, B.). Bati a porta do coche e olhei para o céu azulíssimo. Havia um ponto amarelo em forma de flor. “Na cabeça do tempo eu plantei um ipê amarelo”.


Comentários

  1. Que texto delicioso de ler durante o almoço sozinha em Palmas, melhor companhia! 😍🌹

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  2. Ah, que bonito! Bom beber um pouquinho de cada pessoa que gosta das palavras.

    Juliana Otoni

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  3. Luciana, a sua cisma com o "B" pode ser por causa do seu presidente, que está aí, próximo de você.De repente, se vc cismar com outra letra, vc vai ter a impressão de que ela começa a aparecer mais do que as outras. Não será?

    Paulo Magno

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  4. Ah, maravilhoso!

    Fátima Venceslau

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  5. Suas palavras são encanto e nos encanta. Eu te acompanho nas redes sociais e amo lulupices. Sucesso! Você merece, Lu.
    Um abração,

    Lenízia

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  6. A produção está a todo vapor, maravilha!

    Gabriela Santana

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  7. Pesadelo seria se você tivesse que participar do BBB.
    Pior: se tivesse que assistir a uma maratona de todos as 19 edições.

    Valdeir.

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  8. "Bem no centro da vida eu finquei o meu mastro de ferro, e da palma da mão do meu pai vi o mundo de perto, minha irmã me cantava as canções que eu viria a cantar pra vocês..." Ah... deixa eu fazer jus ao honrado papel de doutrinadora musical! Perotá Chingó, que a amiga Samantha Salve me mostrou, combina com Natalia Lafourcade. Ouça Lulu querida, se ela ainda não chegou aos seu ouvidos! E Socorro Lira (que está na estrada a um tempão e eu só vim conhecer agora), e a Mansa Furia da maravilhosa Josyara. Sem música a vida é irrespirável!

    Andréa Bolzon

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  9. Que retrato maravilhoso, Lu!
    Vimos neste dia o filme "Una", obra maestra que mostra o esplendor da cordilheira!!!

    Mariana Mataluna

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