Limonada Suíça


Faço parte desse povo sonhador



“Tempo é um meio de transporte no qual as pessoas surgem, se movem e desaparecem sem deixar traço…. No tempo surgem e desaparecem cidades maciças. O tempo as levam e as traz.
O tempo deságua no homem e no Estado, se aninha neles e depois saí, e o homem, o Estado ficam…o reino ficou, mas seu tempo se foi…o homem está lá, mas seu tempo sumiu. Onde ele está? Eis o homem: ele respira, ele pensa, ele chora, mas aquele tempo particular, único, pertencente apenas a ele, se foi, sumiu, passou.
O mais difícil é ser enteado do tempo. Não há sorte mais dura que a do enteado, vivendo em um tempo que não é o seu. Os enteados do tempo são facilmente reconhecíveis….
(...) Assim é o tempo: tudo passa, mas ele fica. Tudo fica, mas só tempo passa. Como tempo passa ligeiro e silencioso. Ontem mesmo você era seguro, alegre, forte: um filho do tempo. Mas hoje veio outro tempo e você não entendeu”.

(Vasilli Grossman, escritor russo em "Vida e Destino")



O tempo nunca foi tão sólido para mim quanto agora. Saí da vida para entrar para História sem dar tiro no peito. Depois de hibernar na ficção por 1 ano e meio, caí de bunda na realidade. E a minha realidade é ontem, cercada de hoje por todos os lados. Me sinto uma ilha deserta, sem um mísero coqueiro. Uma commoddity: saca de soja (qualquer semelhança com o volume não é mera coincidência). 

Lembrei agora de uma ex-chefe (das poucas nessa longa jornada no desserviço público que realmente acrescentava) que dizia: “A gente precisa fazer o feijão com arroz, mas pode colocar um bacon de vez em quando”. Ao longo da minha trajetória profissional deixei o ensinamento de lado por pura preguiça de encarar o tempo digital. Não passo de um arroz com feijão pagão. Minhas habilidades não agregam mais valor. Ninguém está nem aí para alguém que sabe escrever. Tô igual ao Brasil, exportando commoddities com pouco crédito na praça. 

Também, quem mandou ficar lendo poesia ao invés de fazer um curso de Photoshop? Quem mandou se meter numa aula de arte renascentista ao invés de se inscrever numa pós-graduação de Excell, Acrobat, Moodle e InDesign? 

A avalanche de uma geração tecnológica me soterra. O que eles falam com tranquilidade me parece muito pior que “japonês em braile” (valei-me, Djavan!). Nunca me senti tão inútil na existência profissional quanto agora. Estou tentando não paralisar de vez frente ao desconhecido. Mas percebo o quanto não ter o controle sobre os meios de produção me fragiliza. 

O terapeuta questiona se estaria com inveja, ressentida porque meus coleguinhas são megablaster motivados e eu não. Não sei se passa por aí. Acho que o lance é mais me sentir “por fora”. Tem a ver com domínio. É um insight: nunca me imaginei uma controladora nata. Apesar de o marido às vezes me chamar de madre superiora, não dei atenção visando o bem maior, ou seja, o casamento. 

A gente amadurece assistindo a filmes nos quais homens se embatem com a questão da aposentadoria ou da demissão para dar lugar a jovens descolados e, de repente, se dá conta de que é você quem está no papel do cara de meia idade. Não serei enxotada, o lado cômodo dos concursos públicos, mas nada ameniza o fato de estar parecendo um vírus, bug pentelho bagunçando os sistemas nérdicos-millenniums da rotina de trabalho. 

A constatação do climatério só piora o estado de coisas. É o envelhecimento da fêmea competindo com a obsolescência da profissional. Preciso de uma saída estratégica pela esquerda (valei-me, Leão da Montanha!). Veja: até minhas referências culturais já são desconhecidas por 90% das pessoas da equipe que me cerca. Galera que nasceu quando estava me formando... 

Diante do mix de deslocamentos, quando seu cérebro já não vale o quanto pesa no mercado das grandes corporações, só me resta investir num corpinho de 40 (fazendo vista grossa para entorses e limitações peculiares). Eliminar mais de um quilo de massa de gordura, ganhando mais de um quilo de massa muscular passa a equivaler a uma promoção, ser nomeada para uma FC, tornar-se líder do projeto mais irado da coordenadoria... 

Não dizem que devemos transformar limões em limonadas? Com adoçante, por gentileza.



Comentários

  1. Bem, eu adoro limonada suíça, e aprendi a tomar com adoçante, né? Espetacular! Mas talvez só os analógicos entendam... Hehehehe

    Marisa Reis

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  2. Adorei! É nóis!

    Karla

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  3. Amei a (quase) parábola do tempo.. e fico pensando se a saída estratégica para a esquerda diante do climatério é realmente essa...mais um texto muito legal! to ficando freguesa desse lulupisces...

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  4. Ótimo texto!

    Rodrigo Holanda

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  5. Muito bom, amei! Muito boa a referência ao texto da inspiração, essa expressão "enteado do tempo" me pegou!

    Mônica Ramos Emery

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  6. Luciana, parabéns pelo blog! Está lindíssimo! Bom, penso que todos nós temos nossos questionamentos e inquietudes, nada a ver com inveja ou ressentimento, e sim um sinal que estamos vivos! Bjs.

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  7. Lu, morri de rir em algumas partes desse texto! Vamos que vamos minha amiga! Quem sabe uma escapada para fazer perfumes e incensos trás novos aromas! Beijos

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  8. Lu, ADOREI!!!!! MARAVILHOSO ..... para variar! Vc é super antenada ao mundo e acho que essa resistência a tecnologia é, literalmente, coisa da sua cabeça! Vc é inteiramente capaz!!!! E o amadurecimento lhe fez muito bem!
    Bjos
    Anna Gabriella

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