Missão: Mariposa





Experiências equivocadas têm um quê de tragicomédia. Ainda bem, caso contrário, os índices de suicídio seriam alarmantes. 

Esse lance de estar trabalhando no subsolo pela primeira vez na vida tem me mostrado um lado Pollyana que sempre rechacei. O que me fez acreditar que poderia ser uma boa ideia me enterrar no submundo do Tribunal sem ao menos receber um cachê de top model? Eis o mau de ser idealista até nas decisões mais importantes. 

De qualquer forma, ser tragada para o upside down world rende metáforas e analogias instigantes, a começar pela comparação inevitável com a série Stranger Things, que considero, diante dos acontecimentos recentes, premonitória. Você também pode descobrir o seu lado piadista: 

- Vou emergir para a superfície e já volto. Os coleguinhas sorriem e você se lembra que está de fato se sentindo o próprio submarino San Juan, aquele que sumiu das cartas náuticas com seus 44 tripulantes nas águas geladas do Atlântico sul. Minhas 44 personalidades esfuziantes submersas por toneladas de concreto, terra e divisórias sem acesso às redes sociais. Ou seja: também sumi do mapa. Ninguém me acha e não sou vista por ninguém. Sem contar que aqui embaixo o ar-condicionado mantém todos em temperaturas reptilianas. 

Mas não é só isso. Você passa a deslizar letargicamente pelos corredores. Seu corpo, o submarino rotundo pós-American way of life, precisa de horas para chegar ao térreo, vencendo metros e metros de corredores e escadas. Vou me instalar um sonar! Outra coisa: dá pra vir trabalhar com a roupa de yoga? Se ficar mais tempo por aqui, vou ser obrigada a reformular meu guarda-roupa. Sai sandálias anabelas e sapatinhos de boneca; entra o sapatênis e o moleton! 

O fato é que a ansiada luz do sol agora vem acompanhada de trilha sonora: respiração ofegante. É como se eu estivesse enterrada viva e conseguisse fugir esbaforida, cuspindo cascalho a cada áudio do whatsapp! 

Inevitável também a comparação com os porões. Não dos navios negreiros, nem da ditatura (se bem que a ridícula censura dos computadores da Corte às ferramentas de comunicação da atualidade seja ultrajante e torturante). Porém, quem tem um bom smartphone acaba se esgueirando para um cantinho com wifi dentro do banheiro ou lá em cima. O que comprova, mais uma vez, a força da teoria evolutiva de Darwin: a vida encontra um meio de seguir o seu fluxo de likes! 

A verdade é que o porão daqui parece mais com o de um grande hospital. A claridade das lâmpadas e os tons esverdeados dão náuseas. E um pouco de medo. A qualquer momento entraremos por engano numa ala que nos levará ao necrotério. De lá, um morto-vivo se erguerá do lençol e... OK, eu já vi filmes de terror para três encarnações. 

Saindo do campo das figuras de linguagem, o subsolo tem me ensinado, não sem dor, a importância da minha insignificância para a existência do STJ, para a sociedade brasileira e para o mundo em geral. 

Eu, que já transitei nas altas esferas do Tribunal, convivendo diariamente com ministros e o séquito de assessores puxa-sacos; que já viajei pelo Brasil assessorando presidentes; que já tive uma mesa com gavetas para chamar de minhas; matérias lidas por milhares de seguidores do site do Tribunal da Cidadania; que já ganhei um concurso de redação e fui premiada com sete dias num spa; janelas com vista para o Lago Paranoá; que já pautei âncoras famosos da TV; que escrevo melhor do que a Tati Bernardi e o Gregório Duvivier e já perdi a conta das vezes nas quais fui plagiada pela Martha Medeiros; que pegava o elevador para chegar ao céu, hoje desço a escada para o purgatório e abraço o ostracismo que me tem de regresso. 

Junto comigo, no limbo, estão os surdo-mudos contratados para digitalizar processos; os servidores amargurados que se isolam voluntariamente nas terras-do-sem-fim e aqueles novatos que só conseguem pensar no próximo concurso. 

É uma fauna que merece estudo mais aprofundado (meu lado antropóloga é quase tão insistente quanto o idealista). Por isso ainda não pedi pra sair. Abandonar a vaidade é preciso para chegar ao paraíso. Vou me penitenciar, vou rastejar, vou refletir. Vou parar de falar mal da rotina, como prega Elisa Lucinda, que já abandonou a dela há muito tempo. 

Só depois desse período de embotamento e comiseração, estarei novamente pronta para renascer. Não Fênix, não peço tanto. Mariposa bruxa faz mais o meu estilo. 




Comentários

  1. Caramba Lu... passei por esta experiência de trabalhar"dando aula de yoga"no quinto subsolo do Bacen...realmente é sufocante!!!

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  2. Oi Luciana,
    Eu acho que o porão está te fazendo muito bem. A sua prosa está magnanima! Como vc está escrevendo bem!!!
    Entendi muito bem o seu dilema!!! E gostei da sua decisão tomada de ficar. Os fortes ficam!!! E vc é uma pessoa forte!!!
    Curiosidade, tem janelas aí onde você trabalha? Ave Luciana!!!
    Sabe, essa luz de hospital, que eu particularmente detesto, está te revelando. Acho que é isso!!!
    Eve

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  3. Querida Luciana,

    realmente, pelas suas palavras (de todo o seu texto de ontem, 16/01), e os sentimentos que as acompanham, percebe-se a sua insatisfação com o seu trabalho atual.


    Espero que muito em breve você consiga uma posição melhor.
    O seu currículo embasa essa esperança.


    Creio que esse seja um daqueles períodos, pelos quais todos passamos na vida, que têm uma carga de ensinamento difíceis de absorver, mas que, depois, nos tornam mais fortes.

    Siga em frente, com determinação, buscando o seu caminho.


    Um beijo,

    Paulo Magno

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  4. Poxa Lú, é pra renascer mesmo essa sua nova rotina pós NYC. Minha mãe anos antes de se aposentar também foi pro subsolo anexo da ALESP, sabe o que ela fazia? Batia perna até, ia ao médico, tomar café na padaria, falava que o ambiente era insalubre e não recebia por insalubridade.

    Renata Assumpção

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  5. Excelente texto!! E mais ainda porque sei de sua realidade atual!!

    Márcia Holanda

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  6. Parabéns Lu,


    Como sempre, fenomenal.

    Davide

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  7. Pôxa Lu, sei exatamente como se sente, também vivi meus dias de cocô do cavalo di bandido nesse mesmim STJ... mas vai passar. São as pausas para reflexão quea vida nos impõe, e você está fazendo isso muito bem. Beijocas! Mônica

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