Existência felina






"É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, 
só assim é possível mudar a realidade". 
(Nise da Silveira)


De quais mesclas nasce o inconformismo? Por que umas pessoas se rasgam e outras não? Meio ambiente; DNA? Sei lá. Só sei que numa escala de doçura estou mais para Martin Luther King do que para Madre Teresa de Calcutá. Mais para Nina Simone - que mandou o Mississipi racista se foder - do que para Gandhi, que acreditava ser possível alcançar a paz pela não violência. 

Não vou contemporizar, não vou ficar em cima do muro. Sou radical, serei obsessiva? Conversando com uma amiga de longa data, ela me contou que tinha medo de algumas pessoas que revelavam sua natureza hostil no Facebook. Bem, ao menos eu sempre fui assim apavorante. Nunca precisei me esconder no anonimato das redes sociais para dizer o que penso e agir de acordo com as minhas crenças mezzo-socialistas, mezzo-abolicionistas (da mediocridade), com uma queda pela insanidade geral e irrestrita. 

Não pensem que ser inconformada é opção de vida. É essência. Quem é, é. Quem não é, sorte sua! Só sei que lá em casa apenas eu saí pró-guerrilha; biruta das ideias. Pago o pato e o preço de divulgar meus pensamentos e de cutucar onças com vara curta pela rotina afora. Onças nada, que a galera não é selvagem, muito pelo contrário. A galera é “vida de gado, povo marcado, povo feliz”. E eu aqui, incorporando a carapuça modelo "chata 24 horas"; desmanchando a placidez do lago jogando pedrinhas de revolta. 

Não é moleza não ser desse feitio. Coleção de desafetos. No serviço público, então: 20 anos de geladeira. O paraíso da conformidade não tem lugar para mentes desvairadas. Meus colegas de trabalho ainda se chocam comigo todos os dias. Seria divertido se não fosse cansativo. E as tais amigas de longa data, elas também já não querem lá muita conversa. Porque as pessoas envelhecem e vão se tornando cada vez mais serenas (ou alienadas) ao contrário de mim: cada vez mais exaurida de convenções. 

O que me alenta é a palavra em si e as palavras de uns poucos. Sei que tem gente como eu vagando por aí. Queria conhecê-los. Vou fazer uma convocação, pois me sinto solitária. Existência felina. Entretanto, a solidão é o caminho natural dos descrentes. Não descrentes da humanidade, por favor! Não confundam rebelião com depressão. Trata-se somente de um caso de rebeldia com causas difusas.

O alívio para a sensação diária de deslocamento acontece em lufadas de indignação vindas de onde menos se espera, a exemplo do comercial da TV Futura, cujo slogan diz: “alimento para os inconformados”. É quase de chorar de alegria! Quem foi o inconformado que conseguiu vender sua sacada bacana para um bando de empresários fascistas? Bravo! 

E se Darwin tivesse virado um burocrata, cadê a evolução? E se eu não tivesse me tornado uma burocrata, teria feito alguma diferença? Eis a questão.


Comentários

  1. Já eu prefiro o Gandhi... Ainda vai levar umas trocentas encarnações para eu ser pelo menos um tiquinho como ele mas... toda caminhada começa com um primeiro passo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Se fosse uma questão de preferência, também estaria com ele, Larinha! Mas ser combativo e inconformado, como disse no texto, não é modo de vida, é natureza. Tenho essa natureza e preciso aprender a viver com ela. Abreijos,

      Lulupisces.

      Excluir
  2. Como eu, você é uma indignada incorrigível e que não se importa com os frutos da indignação. A coleção de desafetos é só mais uma coisa em comum que temos. Ainda teimo em falar o que penso e me recusar a desistir. Mas tenho que confessar que meus 54 anos tentam me trair a todo custo.
    Saudades dos nossos acalorados papos ao redor de um vinho.

    Beijo.

    Walton Pontes Carpes Júnior

    ResponderExcluir
  3. Adorei o texto! Traduziu minha alma.:)

    Monalisa

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos