Tá servido?




                                                       Quando eu era menina
                                                                                 bem pequena,
                                                                                 em nossa casa,
                                                                                 certos dias da semana
                                                                                 se fazia um bolo,
                                                                                 assado na panela
                                                                                 com um testo de borralho em cima.
  
                                                                                 Era um bolo econômico,
                                                                                 como tudo, antigamente.
                                                                                 Pesado, grosso, pastoso.
                                                                                 (Por sinal que muito ruim.)

                                                                                 Eu era menina em crescimento.
                                                                                 Gulosa,
                                                                                 abria os olhos para aquele bolo
                                                                                 que me parecia tão bom
                                                                                 e tão gostoso.

                                                                                 A gente mandona lá de casa
                                                                                 cortava aquele bolo
                                                                                 com importância.
                                                                                 Com atenção. Seriamente.
                                                                                 Eu presente.
                                                                                 Com vontade de comer o bolo todo (...)
(Cora Coralina)
   

Em caso de bolo, sou bem goiana Cora Coralina. O bolo do prato azul pombinho, guardado em cima da cristaleira e ofertado para as visitas. Um bolo de bolo: farinha de trigo e ovos. Bolo regrado de tempos áridos e, por isso mesmo, salivado, ansiosamente aguardado. 

Bolo de fubá quentinho com uma generosa porção de manteiga derretendo por cima... Bolo de laranja, de limão, cenoura. Bolos brancos, amarelados, fofos, mas consistentes. Bolo pra tomar com chá fumegando e queimando a boca. Ou com café, para quem é de café. 

Talvez por já saber que seria uma insone na vida adulta, desde pequena eu preferi o chá. Adorava chá mate leão acompanhado dos bolos de fubá da minha mãe. Sabor de infância. Ela também fazia “mané pelado”, o bolo de mandioca. Mas, por esse, nunca suspirei. 

Gosto ainda de bolo de coco, apesar de não ser uma fã de coco. Credito o fato à singeleza desses quitutes, preparados com o mínimo para render ao máximo. Assim eram os bolos de ontem. Hoje pululam as tais casas de bolos ditos caseiros. Arremedo de uma rotina que não existe mais. 

E são tantas misturas: Ovomaltine, Romeu e Julieta, banana, goiabada, Luís Felipe... Sei lá, talvez façam parte do imaginário de crianças de outras bandas, o Brasil é tão vasto e profundo. Mas para mim não dizem nada. Se nessas lojas de produção em série eu vou, compro os mais bobos, os vira-latas. Tento resgatar o cheiro que vinha do forno, o bater da massa à mão, o comer da sobra crua. 

Uma das irmãs de minha mãe, tia Divina, foi dona de padaria no interior de Goiás. Cresci vendo aqueles padeiros amassando e modelando tantos tipos de pães ao calor das bocarras quentes que engoliam fornadas e fornadas de rosquinhas húngaras, sonhos e bisnagas. A experiência foi definitiva e fatal: morro por pães. Nada pode ser melhor do que um francês pelando com geleia de morango e manteiga. 

Ali também refinei o voyeurismo pelo artesanal. Fascínio pelas mãos que se juntam aos ingredientes. Assistir à mãe, à madrinha e aos padeiros preparando o alimento sempre me colocou em estado de nirvana. E assim é até hoje: melhor ver do que fazer. Poderia ter aprendido muito, porém só guardei cenas de lirismo, nenhuma receita e talento. 

Então eu volto para o bolo que eu não fiz e que se diz caseiro. Olho para sua cor dourada exalando erva-doce sobre a bancada. Cravo a faca em seu ser voluptuosamente e ele perde um pedaço. Levo ao forno de micro-ondas, quanta heresia, e de lá sai uma fatia cheirosa e ardente. Passo a manteiga enquanto beberico a infusão de melissa com maracujá. 

Estou solitária no apartamento, a cachorra ao pé da mesa. Silêncio em casa de criança tem um quê de sinistro, mas não ligo. Assim como Quintana, tomo chá com meus fantasmas. 



Comentários

  1. Hummmm delícia, amo bolos...tenho também lembranças dos cheiros e gostos dos mais variados tipos feito pela minha babá Teté.Hoje mesmo passei no Biscoito Mineiro e comprei um de maçã com nozes para tomar com um café bem quentinho, servida?
    bjs Namastê!
    Cynthia

    ResponderExcluir
  2. Depois do chocolate e do sorvete, o bolo é sem dúvida a maior invenção da humanidade em termos gastronômicos. E para usar uma palavra que combina com a blogueira, ele é muito VERSÁTIL. Aceita todos os recheios e sabores. E não satisfeito somente com isso, recebe com perfeição o chocolate e o sorvete. Ai que vontade de comer um Petit Gateau! Bolo não me traz memórias de infância, mas da adolescência, quando eu mesma me meti na cozinha. Meu carro chefe era o pão-de-ló recheado com doce de leite e ameixa, regado na calda e coberto com marshmellow mesclado com aquele preparado de chocolate com café. Que saudade!!! Só não vou fazer um para o Rodrigo, porque já encomendei a maravilhosa torta de abacaxi, que mais parece um pavê.
    Do Rei do Bolo às tortas maravilhosas da Casa Doce, todos têm espaço no meu coração.

    ResponderExcluir
  3. Fiquei emocionada ao ler seu texto, trouxe maravilhosas lembranças da época que sentíamos esse magnífico cheiro de pães saindo quentinho do grande forno da padaria que era de tijolos e pedras e a lenha. Saudades do pé de elefante e do beijo de moça.

    Mônica Martins

    ResponderExcluir
  4. Nossa, quanta identidade! Também adoro o bolo de bolo! E quando vou a uma dessas casas de bolo, também peço do mais trivial: bolo de bolo, farinha de trigo e ovos. Também tenho essas lembranças... Adorei! Como sempre, pôs em palavras aqueles nossos sentimentos mais triviais...

    Bjs!

    Ana Claudia

    ResponderExcluir
  5. Memórias olfativas, afetivas com uma tia que só poderia chamar " Diva ".Obrigada por servir um texto com sensações olfativas que me fizeram salivar.

    Simone.

    ResponderExcluir
  6. Adorei o texto! Lá em casa, em Minas Gerais, eu preparava os bolos para meu vô/pai que sempre elogiava minhas criações!!! Deu saudade de ver ele com tanto gosto comendo os quitutes que eu fazia com tanto amor para ele!! Oooooo saudade!

    Gabriella Santana

    ResponderExcluir
  7. Aprendi várias receitas, com minha avó, com minha mãe, com D. Maria. Faço todos eles, mudo uma coisa ou outra, seco minhas flores, minhas folhas, busco sementes, faço meus chás, corro atrás daquela vida de fazenda "salta pau", corro atrás dos sabores da minha infância. Eles me guiam na minha cozinha, as lembranças realçam os sabores, às vezes as lágrimas salgam algum bombocados. E eu sempre término comendo como Quintana, no silêncio ou não..

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mais legal do que comprar é fazer. Admiro todos os que têm talentos artísticos e gastronômicos. Você é 100% algodão, primo Alessandro!

      Excluir
  8. Que texto gostoso!

    Júlio Alba

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos