Fazendo a cabeça




De repente todo mundo sorria para mim. Alguns falavam comigo com a leveza de um dia de férias. O que está acontecendo? Entrei num comercial de margarina por engano? Era uma quinta-feira, supermercado. Um dia como outro qualquer, não para mim, pois aniversariava meu primogênito. Mas estaria eu transparecendo a felicidade de ter um filho? A magnitude de vê-lo entrar na adolescência e ter o privilégio de sabê-lo um ser humano mais interessante do que jamais fui? 

Não, não era possível. Não encarno o tipo mãe-que-baba. Meus sentimentos maternos são discretos e contraditórios. A maternidade me enriquece e me debilita: gosto e desgosto. O amor profundo aterroriza e desestabiliza em rajadas incessantes. Todavia, ali estava a comprar batata-palha e molho de tomate para o cachorro-quente do pirralho; a escolher cebolas enquanto os olhares maravilhados caíam sobre mim como se eu irradiasse um halo de luz reconfortante. Logo eu, a eterna deslocada no tempo e espaço. 

Não entendia nada, mas correspondia como me era possível. Brasilienses não são simpáticos. Candangos são esnobes e insondáveis. Sei disso. Sou daqui. E luto todos os dias contra a minha natureza casmurra. Falo bom-dia para todos no elevador e ao entrar em salas de espera, na tentativa de ser uma pessoa elevada. Porém a “festa estranha com gente esquisita” é uma rotina em Brasília. Renato Russo sabia das coisas também. 

Mulheres, homens... Eu havia me transformado num ímã para todos os gostos. Chequei minha indumentária, sei lá, estaria provocativa demais? Não, nem me lembro do que estava usando, uma blusa qualquer apoiada numa calça qualquer para um dia de muitos afazeres. Nada era novidade em mim além do... Chapéu! Sim, acabara de encontrar o culpado por toda aquela amabilidade. 

Um chapéu de palha sintética made in China para proteger meu novo rosto pós-peeling, pós-descoberta da doença crônica chamada rosácea. O chapéu recém-comprado na Feira da Torre era o responsável pelo sopro de humanidade na terra do concreto. A delicada treliça de suas abas estaria cochichando que loucuras nos ouvidos alheios? 

Contei o acontecido para a dermatologista que concluiu: “Você ficou com cara de madame, é isso”. Ela me sugeriu um texto no blog sobre os benefícios do chapéu. Tudo o que consigo escrever foi que me senti muito beneficiada pela afetuosidade da galera no supermercado, no estacionamento, na farmácia... 

Será que a sociedade é mais receptiva às madames? Taí, algo a se debater. Desconfio que seja outra coisa: o chapéu remete à praia, à descontração de uma tarde ao sol furando as ondas. Atiça nosso descompromisso. Resgata memórias de verões apimentados. Convida para uma moqueca com os pés na areia. Ou um sorvete de três bolas, com direito à soneca na rede mais próxima. 

Um chapéu de abas tem alma carioca, pronto para fazer amizade com você na fila do pão... Tem brejeirice de Gabriela e o mistério da Ingrid Bergman. Chapéu estremecendo o status quo, a rotina massacrante, a frieza desta cidade exata. Chapéu, véu, céu, mel, volúpia... 

Nada mal para uma estreia. O problema é que também foi uma despedida. Onde andará o chapéu que parava o trânsito? Justo quando me acostumava ao flanar das divas, caí na armadilha da própria cabeça de vento. Não rolou nem uma foto pro FB...

Sábado que vem preciso voltar à Feira da Torre para tentar readquirir os meus 15 minutos de fama.


Comentários

  1. taí um acessório que eu acho bem charmoso, mas não sei como usar!

    mas com certeza os olhares não eram só por causa do chapéu não :) quando a gente está feliz, irradia isso para os outros :)

    bjs!
    Fabs

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  2. Oi, Lu!

    Adorei o texto!

    Dani Sales

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  3. Ausência de chapéu nas cabeças brasileiras é um mistério pra mim.
    Aqui em Aix o sol queima muito menos, mas usamos sem pudores.

    E essa rosácea com esse peeling deu rock?

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    1. Poizé, caro Monsieur Rodrigô, também não entendo a falta de chapéu nas cabeças brasileiras. Aqui é muito quente, tem um sol pra cada indivíduo, mas ninguém usa chapéu.
      Aliás, acho que entendo. A questão é que o brasileiro ama sol. Quer sempre estar bronzeado. Eu mesma adoro pegar sol, mas não posso mais.
      Quanto ao peeling, deu bastante certo. Amenizou consideravelmente as manchas deixadas pelas rosáceas.

      Beijão,

      Lulupisces.

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  4. Acho até que vou comprar um chapéu pra ‘virar’ madame! rs

    Juliana Neto

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  5. Ahahaha... Ficou com cara de mais simpática, Lu, isso sim! Foi essa a razão das caras simpáticas... Ou então você ficou tão feliz de estar de chapéu que achou que as pessoas estavam simpáticas... Vai saber?

    Bjs, Ana

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  6. Texto lindo...gostoso de ler.
    bjs Namastê!
    Cynthia

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  7. De vez em quando eu leio os textos "por atacado", como você mesma diz... Gosto muito! E é sensacional essa sua perseverança de manter o blog sempre ativo. Muito bom!!

    Mônica Emery

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  8. Oi. Lendo seu divertido relato sobre sua experiência com chapéus me lembrei dessa aquarela (olhe o anexado em anexo) feito por esse cara aqui:

    https://instagram.com/marcelotolentino/

    Bem bom o trabalho dele, né não?

    Valdeir Jr.

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