Por uma pitada diária de sal




Foi o psicanalista e escritor Contardo Calligaris quem afirmou em entrevista que prefere ter uma vida interessante a uma vida feliz. É dos meus. Esse papo de felicidade é por demais efêmero e angustiante. Faço um esforço danado para viver histórias fora do comum e talvez por isso elas ocorram involuntariamente comigo. 

Não que eu seja mais especial do que você, não me julgue pretensiosa, mas exatamente porque me deixo levar pelos acontecimentos. Estou aberta aos programas de índio que resultam em experiências quase sempre... interessantes! É o ou não é o objetivo da coisa toda? 

E assim aconteceu no sábado. Por motivos alheios à minha vontade, me vi caminhando sob sol forte na periferia de Goiânia. Tive de deixar minha irmã mais velha na saída da cidade a fim de que ela não se perdesse para alcançar Inhumas, lugarejo-origem da nossa família. Quem conhece a capital goiana sabe que os planejadores estavam sofrendo os efeitos de alucinógenos ao desenhar aquela malha viária. Gyn, mesmo com GPS, é capciosa. 

Irmã entregue à rodovia, meu primo eu seguimos a pé pelas calçadas esburacadas. Brasil, Pátria Educadora, tem asfalto bacana, mas calçamento tétrico. Eis a mentalidade de uma nação que respeita o pedestre e vai pra frente. 

Flanar por redondezas nunca dantes navegadas sempre enriquece suas memórias, retarda o Alzheimer por mais uns anos, faz você torcer o pé ou ser assaltada. Sabe como é... Calma aí, essa história tem final feliz. Pode continuar lendo. 

O sol castigando nossos miolos, os papos fluindo animados, a fauna ao redor: trabalhadores simplórios, gente não como a gente - pequenos burgueses em aventura exótica - porém os legítimos donos do pedaço, os representantes da nação: afinal, são eles que elegem os prefeitos, os governadores, os senadores, deputados e presidentes. São esses periféricos que dão o troco nas urnas levando ao poder tudo o que nós, intelectuais elitizados, repudiamos com veemência. 

Calma aí, esse texto não é uma análise político-social acadêmica de botequim. Pode continuar lendo. E passa uma menina materializada do anime. E passa a fervorosa: “eu vou casar com Deus!”. E passam homens, mulheres e crianças envoltos em seus pensamentos sofridos e excluídos enquanto meu primo e eu  costuramos frivolidades. 

Alcançamos a porta de um centro comercial. “A agência tem a conta desse shopping, cliente chato”, diz meu primo. Emendamos um papo sobre as agruras dos publicitários que ambos partilhamos. Ai que sede! O calor fazia seus estragos no meu corpo desidratado. O suor escorrendo pela barriga, o nariz molhado. “O sol nunca mais vai se pôr” é o sentimento que me assola ultimamente. Estou apreensiva com o eterno verão brasileiro. 

Mas o que será que aquele povo faz esperando ali na garagem do shopping? Não são nem nove horas da manhã e a galera já se aglomera... Cruza a gente um pai com seus dois garotos e eu me lembro dos meus dois garotos que logo mais estarão em Goiânia. 

- Moço, o senhor sabe por que tem tanta gente ali? 

- êm hum banlançonheral! 

-Ah, tá bom. Obrigada! 

Não olho. Não olho para o meu primo, o Jim Carrey tupiniquim. Não ouso registrar sua observação silenciosa: “Tanta gente pela rua e você pede informação logo para o fanho?”, diria sua face sarcástica. 

Enfim, chegamos ao terminal de ônibus como cuscuzes e voltamos para o centro da cidade. Não sem antes soltar a gargalhada que reprimimos com muito esforço lá atrás. Nenhum dos passageiros entendeu tanta imbecilidade àquela hora da manhã na habitual lata de atum sufocante. A rotina acabava de ganhar uma pitada de sal. 


Comentários

  1. Gago e fanho. E com língua presa. Sabia que você ia usar seu multiprocessador para transformar esse episódio em mais um bom texto.

    Valdeir Jr.

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  2. Sempre bom ler seus textos, xará!

    Luciano

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  3. Maravilha...felicidade pura! lembra ? felicidade e liberdade para um yogue é não se deixar envolver com as dualidades da vida, então a gargalhada, " a pitada de sal na rotina" é pura felicidade...quem disse que ela não é possível? fiquei muito feliz ao ler seu texto....bjs Namastê!

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  4. Contribuiu para um bom tempero do meu dia. Adorei!

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  5. kkkk Muito bom mesmo, Lu! Vc transporta a gente para suas histórias!!! Morri de calor aqui só imaginando a caminhada de vocês pela louca Goiânia! :)

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