Os desígnios do vexame





A Lei de Murphy é, depois da Lei da Gravidade, o normativo que mais regula a nossa vida. Por isso é importante estar preparado para ser protagonista de algum mico a qualquer momento. Mas o problema é que na correria do dia a dia acabamos nos esquecendo de quanto são implacáveis os desígnios do vexame. 

Noite dessas, uma amiga querida me convidou para assistir à missa, pois era o aniversário dela. Convite dessa envergadura a gente aceita. Todavia, não teria tempo hábil para sair da aula de Pilates e me aprontar. Avisei que iria direto da aula, fedida e descabelada, lhe dar um abraço. Malucamente, ela me incentivou: “adoro abraço fedido!” 

Me arranco da aula uns minutos mais cedo, coloco a pantalona amarelo-ouro que havia usado para trabalhar pela manhã e mantenho a blusa vermelha que havia usado para malhar. Imediatamente me dou conta de que estou vestida de McDonald’s, mas era tarde demais. Não dava para adentrar a igreja com uma calça de lycra justinha. Desembestei de Ronald e fosse o que Deus quiser. 

E Deus quis. Quis que o padre, muito simpático e pragmático, conclamasse os fieis a saudar os aniversariantes do mês. Lá fomos nós pra cima do altar. Minha amiga vibrou por ter alguém para dividir aquele instante chanchada com ela. Porque podem acreditar, a Lei de Murphy não perdoa: só havia duas aniversariantes de fevereiro: ela e eu. 

Saímos da nossa fileira de bancos de mãos dadas, uma confortando a outra, e nos postamos em frente a uma igreja razoavelmente cheia. Eu, a palhaça importada, que nem gosta do McDonald’s, me regozijando em estar com os óculos um tanto defasados que me impediam de reconhecer a plateia. E todos se levantam para cantar o indefectível “Parabéns pra você...” O parabéns mais interminável da minha vida, sem sacanagem. 

Depois, era rir. A gente tinha de rir daquilo tudo. E eu nunca mais misturo vermelho com amarelo, juro. 

Parece que igreja é um lugar propício para micos. Essa história me fez recordar outra situação constrangedora que passei lá em Nova Iorque. Bernardo e eu decidimos ir ao Harlem conferir uma daquelas tradicionais e maravilhosas missas gospel de domingo. A gente já morava na cidade há algum tempo e não podíamos perder a oportunidade de prestigiar um culto real, não turístico. Passeamos um pouco pelos quarteirões e decidimos entrar numa pequena igreja que já estava recebendo sua comunidade: maravilhosas mulheres negras com seus chapéus e luvas. Homens negros em seus melhores ternos. Crianças de tranças e penteados bacanas. 

A celebração começou e tudo estava muito emocionante até o momento em que o pastor diz: estamos recebendo novos integrantes, gostaria que todos vocês saudassem os visitantes. E aí ele olha pra na nossa direção e pede que nos levantemos. A igreja lotada canta alegremente para Bernardo e eu, bate palmas com fervor e eu percebo que somos os únicos não negros presentes no recinto. Foi avassalador me ver naquela situação, ainda que o ambiente fosse pacífico e caloroso. Nesses minutos eternos, senti como é opressor ser minoria. A desagradável, insuportável sensação de não pertencimento; de inadequação. 

Deus escreve certo por linhas tortas e se move por caminhos misteriosos. A Lei de Murphy não é senão uma lição divina diária para nossa vaidade e soberba.


Comentários

  1. pois então. Deus é tão maravilhoso que pega nossa vaidade e põe de lado, pega nossa mão e junta com a mão de outra pessoa e leva, as duas juntas, ao seu altar, para, lá, as bênçãos Dele nos alcançarem. Obrigada por ter participado comigo desse "mico", que encheu meu coração de alegria.

    Carmem Cecília

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  2. Hahaha, hilário! Essa situação do amarelo com vermelho ainda está melhor que a mãe de uma amiga na época de escola. A aula no Mackenzie sempre começou muito cedo, e essa "tia" mãe de uma amiga, sempre ia levá-la na escola de pijama / camisola. Estava sempre dirigindo seu carro com películas, nem se importava.
    Um belo dia, Murphy resolveu TROLLAR a coitada: o pneu do carro furou e ela sem celular, teve que pagar o KING KONG e descer do carro de baby doll e pedir ajuda na rua. Hahahahahahahaha... Eu NUNCA mais saí de casa mal arrumada nem pra ir numa padaria! Sempre lembro dessa mulher, que vexame! A lei de Murphy não perdoa: sai descabelada e desarrumada de casa pra ver: você VAI encontrar um conhecido na rua! Beijos, Lulu!

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  3. Tão desenvolta por trás das palavras e tão tímida no centro das atenções presencial. Lu cheia de entrelinhas.

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  4. Mico porque? Não acredito que você fique preocupada com o julgamento alheio...

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  5. Muito booommm sempre!!!
    bjs.Namastê!
    Cynthia

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  6. Vou te apelidar agora de "Lu Mc"! Esse me fez rir muito! Quem nunca passou por um mico assim? Falou tudo! ;)

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  7. Que texto maravilhoso de ler! Me fez pensar bastante! Gostei! E engraçado também.

    Beijos,

    Evelyn Lara

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  8. adoro seus textos!

    Fabiana Vasconcelos

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  9. Ri muuuuito!!!

    Claudia Valadares de Carvalho

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  10. Muito legal Luciana!!

    Missa e Culto. Como dizem alguns amigos: não se pode dar chances para o azar!! (nesses casos, não se aplica o "azar", mas se pode dizer "destino")

    Anyway, foram duas experiências interessantes!

    Um beijo,
    Paulo.

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  11. Perdoe, xará Luciana Assunção! Mas a inadequação não combina com vc e Bernardo nunca. É um encontro fisica e linguisticamente especial. Forte abraço!

    Luciano Villalba

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