≠ é =

O amor entre surdos é mais amor? Os dois chegando em silêncio, lado a lado, rostos de perfil. Dava para sentir os olhares intensivos de um na pupila do outro. É preciso. Na falta de palavras, os olhos é que dizem as ânsias. Os olhos, os olhos...

Repentinamente um gesto no ar parece involuntário, mas é certeiro, intencional. Os dois sorriem. Os dentes se abrem em afetos e entendimentos. O diálogo acontece à revelia de nossa falação, tantas vezes inaudível.

A amizade entre surdos é mais amizade? Os grupos animados, colados, face to face. Sinais expansivos, entusiasmados. Na falta de palavras, as mãos ganham vida própria. São talhadas para a expressividade das intenções e dos toques. Os surdos se pegam, se encostam, se cheiram. Os demais sentidos em prol da compreensão e do calor humano.

Quem dera desde pequenos fôssemos apresentados ao mundo dos que não são iguais à maioria. Que nos fosse dado esse aprendizado do não ouvir, para entender. Do não ouvir, para tocar. Do não enxergar para ver o que realmente importa. Se as escolas fossem inclusivas desde a infância, evitaríamos muito ruído, muito preconceito, muita reação descabida.

Recordo que trabalhei com um cego. Era a minha primeira experiência real e diária com a diferença. E ela aconteceu repleta de falhas na comunicação porque os que enxergam não têm visão do espaço do outro. Somos muito egoístas. Ditadores com os cinco sentidos à disposição da nossa inércia.

Mudávamos os móveis de lugar sem avisá-lo e pretendíamos que o colega cego não colidisse o corpo com o novo layout. Saíamos do elevador no andar desejado sem informar e ele ficava falando sozinho. E na nossa insensibilidade de telespectadores da vida, atirávamos: aquela pessoa não é a cara daquela outra?

O colega cego só fazia rir. Achava graça da nossa ignorância e prepotência. Das nossas gafes imperdoáveis. Como deve ser difícil nascer num planeta de gente que se acha perfeita. De quem tem tudo aos seus pés e não sabe compartilhar, aceitar, acolher, rever comportamentos, mudar de ótica.

Quando admiro os surdos e os portadores de síndrome de Down nas portarias, conversando pelos corredores do meu trabalho, sinto-me profundamente conectada e feliz com a maleabilidade do viver. Os diferentes me mostram que somos todos iguais em nossa imperfeita humanidade.


Comentários

  1. "(...) aprendizado do não ouvir, para entender. Do não ouvir, para tocar. Do não enxergar para ver o que realmente importa." Pois é, Lu... difícil pra gente, né? Pra mim, então, que sou tão dependente da palavra, demoooro às vezes pra entender o que está expresso no olhar, nos gestos, no toque, nos silêncios, nas presenças e ausências do outro. Obrigada por me trazer essa reflexão, amiga. bj

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  2. Muito bom!
    Beijos!

    Claudia Morum Xavier Lapa

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  3. Luzinha, também trabalhei com uma cega! E ela era cega de nascença! Era incrível como ela "enxergava" as coisas... sabia do que acontecia ao seu redor. Era esperta demais, não conseguíamos esconder nada dela, ela descobria, através de nossos silêncios, do nosso andar, da nossa "sombra". Não estou sendo poética não, era assim mesmo! Paradoxal, né? Aprendi muito com ela, uma simpatia de pessoa. Uma vez ela disse: Deve ser tão bom enxergar, né? Aí eu fiquei muda...rs. O que dizer, né? Me senti estranha, uma privilegiada, sem saber porquê sou. Gente, nunca ter enxergado, como deve ser isso? Ao menos o cego que tenha visto o mundo algum dia, né, mas nem isso, puxa, que difícil... Que bom que o espaço deles está se abrindo... vi uma reportagem sobre o trabalho deles nas repartições públicas aí em Brasília. Converse mesmo com eles, faça contato, é enriquecedor!
    Bjs
    Patty

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  4. Gratíssima pela reflexão...será tema da minha meditação :"Os diferentes me mostram que somos iguais em nossa imperfeita humanidade".
    Namastê!
    Cynthia

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  5. Ai que bom, Lu!!!
    Agora consigo ler seus textos no blog aqui na Fisioterapia!
    Um suspiro entre um ai e um ui alheio!
    Bjo,

    Dani.

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  6. Luciana,

    achei bem legal seu texto (é assim que devo chamá-lo?)

    Lá em Campinas, logo no primeiro ano que fui pra lá, tive a oportunidade de conviver com um cego que trabalhava na Biblioteca da Unicamp. Na encadernação de livros.
    Morávamos na mesma pensão.
    Não sei como, mas o cara saía sozinho, andava pelo centro de Campinas.
    O pessoal da pensão ia todos os dias no mesmo horário pegar o busão pra Unicamp (fretado), e muitas vezes ele ia até o ponto com a mão no meu ombro.
    Então pude conhecer, um pouco e "de fora", esta difícil vida de um cego.
    ("De dentro", eu já passei, por alguns meses, a experiência de quase não enxergar. Te conto outra hora esta estória)

    Surdos: lá em Campinas também, vi, por algumas vezes, uma "roda" de surdos "batendo-papo". Muito interessante, e dinâmico.

    É aquela velha questão: a gente não percebe o real valor da nossa perfeição (física), até que a gente se depara com esses casos, ou a perca, mesmo que temporariamente.

    Um beijo, e bom fim-de-semana pra você e toda a família!!

    Paulo.

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  7. Lidar bem com as diferenças é uma dos maiores sinais de sabedoria que eu posso imaginar. No nosso dia-a-dia candango, fico sempre chocada pensando como deve ser dura a vida de quem precisa de cadeira de rodas nessa cidade. Nada é planejado respeitando as necessidades deles! Dose, hein? Belo texto, Lulu. Beijos, Débora

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    Respostas
    1. Deboratti, beibe,

      muchas gracias! Eu também achei esse texto muito bonito. Foi feito com um sentimento genuíno de comunhão com todo mundo que não é parecido comigo.

      Beijão,

      Lulu.

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