On the rocks


Pungente
o gosto que sinto 
do meu próprio veneno
atroz contundente
e não se sabe e não se vê
ardente
feito o lume de um vulcão
não nasci para ser sobejo
mas flori para ser festejo
devaneio palpitação
coração que salta peito afora
paisagem em contemplação
(Katarine Araújo)


Os cubos de gelo espatifam na cerâmica e trincam como vidro. Nunca antes me ocorreu que a água solidificada e o estado físico do vidro, um sólido amorfo, são tão similares quando trincados.

Para se fazer vidro é preciso aquecer areia e outros componentes até 1.500 graus C.

Para se obter gelo em cubo, é preciso resfriar a água a zero grau Celsius.

Mas ao se fragmentarem, vidro e gelo se irmanam na fragilidade. Lascas pontiagudas se espalham a uma certa distância. Há pedaços maiores e minúsculos num raio considerável. Juntar os caquinhos de gelo ou de vidro dá trabalho.

O gelo e o vidro cortam a pele de forma diferente. Um, queima; o outro penetra, porém ambos são transparentemente afiados. E claramente impassíveis. 

O vítreo do olho é um fluido gelatinoso e transparente que preenche a maioria do interior do globo ocular e lhe dá forma, constituído por 99% de água.

Por isso, um olhar vitrificado gela a alma, cristaliza os sentimentos e parte o coração, como se congelado estivesse e fosse arremessado contra a parede: dezenas de pedacinhos esparramados pelo chão. Cuidado, não pise! Você pode se cortar ou desmilinguir. 

O gelo é efêmero tal qual romance de verão. O vidro não, se de qualidade for. Atravessa séculos, imortal até que trinque.

E vidro quebrado, dizem, dá azar. Ao contrário do gelo, um refrigério. No entanto, mastigar vidro ou gelo não é recomendável. O primeiro, mata. O segundo, tira o esmalte dos dentes.

O frasco de vidro rachou no solo. Fendeu-se em cacos gélidos e desiguais.

Um pano enxugou as lágrimas derretidas que ensopavam o ladrilho.

Partiu-se o amor. Sobrou gelo seco disperso pela casa.


Entre os brindes irlandeses existe esse: que seus bolsos sejam pesados, que seu coração seja leve e que a sorte lhe persiga noite e dia. 
Que 2022 seja mais solar na alma e na pátria!


Comentários

  1. Belo texto!

    Cynthia Chayb

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  2. Primoroso, digno de ser lido duas ou mais vezes. Amei.

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  3. Gostei muito dessa crônica, preciosa! E ainda coma epígrafe de Katarine Araújo. Que bom ter vocês duas no nosso pavilhão da Confraria!

    Karla Melo

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  4. Delícia de texto!

    Fabíola Rech

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  5. Adorei Lú, minha mãe amava chupar gelo, mastigar!

    Renata Assumpçāo

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  6. Amei! Tu é maravilhosa!

    Katarine Araújo

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  7. Quantas correlações interessantes, inteligentes e simples! Não consegui interromper a viagem e isso é raro e delicioso. E a chuva cai forte lá fora.

    Apri Ramos

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  8. Como eu gosto de ler o que você escreve! Fico boba com a facilidade com que você costura as palavras.

    Luana

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  9. Gostei.
    Olha... o seu texto me remeteu a um passado ultra-remoto!!
    Aos recônditos espaços da memória profunda.

    Quando eu ainda era criancinha-pequena lá em Minas, eu conheci muitas pessoas "da roça", como se costumava dizer.
    E, muitas dessas pessoas, pouco iam à cidade. E eu, ouvi dizer, que muitos deles tiveram contato com o gelo, produzido pelo homem, mais tarde.
    Talvez, só conhecessem as pedras de gelo caídas do céu: o granizo.

    Pois bem, tô te falando isso, porque o seu texto, me trouxe à mente uma pequena história, lá daqueles tempos.
    Dizia que um menino pegou uma pedra de gelo, colocou na boca, e começou a chupá-la. (Meio feio falar assim, não é? Mas a palavra é essa!)

    A mãe, ao observar o menino, perguntou: Fiio, cê tá chupano vidro?
    Ao que o menino respondeu: Não mãe! Tô chupano é pedra d´água!

    Olha só que coisa!!

    Um beijo.

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  10. Que lindooooo! Além de informativo! Parabéns Lu!

    Da sua fã n. 1:

    Anna Gabis

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