As mal traçadas linhas





“Viver é cumprir sonhos, esperar notícias.”
(Mia Couto)


Há quem acredite que ela não tem mais espaço nesse mundo de comunicação instantânea, de redes sociais, de maquininhas espertas que nos conectam com todo o planeta. Entretanto, até bem pouco tempo atrás (30, 40 anos), ela seguia soberana como o melhor canal de transmissão de conhecimento, afetos, segredos e novidades. As cartas - testemunhos gravados em papel, tinta e garranchos para a posteridade - já moveram montanhas ao longo da história das civilizações. Raras no cotidiano atual da maioria das pessoas, as missivas continuam firmes e fortes entre uma parcela da população sem voz: os presidiários. 

Você sabia que o STJ recebe centenas de cartas enviadas por presos todos os meses? E que é a Seção de Informações Processuais (Seinp) que tem a árdua e importante tarefa de ser a ponte entre as reivindicações dos encarcerados e as instituições públicas da vida aqui fora? Só no primeiro trimestre de 2014, foram mais de 400 correspondências. Algumas são respondidas e outras apenas juntadas aos processos ou ainda autuadas. 

Mas como é a rotina desse verdadeiro ECT judicial? A equipe da Seinp recebe as cartas, que são analisadas e direcionadas da melhor forma possível. O trabalho é feito geralmente a seis mãos, ou seja, por duas servidoras: Juliana Sales e Gabriela e uma estagiária de nível superior de Direito, a Amanda. 

Primeiro, a carta passa por uma triagem. Caso caiba a elaboração de documento (carta ou ofício), faz-se um registro e os documentos são redigidos a partir do programa Geradoc, que é essencial para a missão, pois facilita a execução e correção das correspondências, além de acelerar os procedimentos. Dentro do programa, o documento é supervisionado e assinado, momento em que toma forma física para encaminhamento à expedição. 

Existo, logo escrevo - No dia a dia desse processo, é possível se deparar com várias situações que evidenciam os graves problemas do sistema carcerário brasileiro. Em suas cartas, os prisioneiros enviam de tudo: súplicas, reclamações, declarações de amor, denúncias, delírios conspiratórios... Escrevem como se quisessem lembrar aos compatriotas: existimos! Somos feitos de carne e osso como você! 

Por isso, o trabalho da equipe é delicado e, muitas vezes, comovente. A fragilidade das matérias expostas nas “mal traçadas linhas” pode dar dor no peito. Como a recebida de um preso de Leopoldina/MG: “Pedimos somente para sermos tratados como seres humanos. E que funcionários venham trabalhar por nós presos, e não somente para receber. Precisamos de ajuda, estamos passando fome e necessidade, queremos sair com a cabeça erguida, estamos no século 21 e preso tem que ser resocializado (sic) e não exculachado (sic) desta forma. Socorro!”. 

Juliana, na Seinp há pouco mais de um mês, confessa que a atividade mexe com a sua emoção: “Quando comecei a ler as cartas, fiquei um pouco perdida entre o lado ser humano e o lado profissional. A maioria das histórias balança a gente, mas as que mais me dão um aperto no coração são aquelas que mencionam a família que está fora da cadeia: a esposa que é constrangida nas visitas, os filhos pequenos e pais idosos que não têm assistência dos presos. Compreender a desestruturação da instituição familiar do preso é algo doloroso”, constata. 

Em sua maioria, os presos não têm conhecimento dos seus direitos constitucionais. Por isso, os pedidos vêm perdidos, mal direcionados ou repetidos. “Acontece, às vezes, de haver um colega de carceragem que pode ser comparado aos antigos rábulas: redigem cartas para vários presos, com as mesmas solicitações, baseadas nas mesmas leis”, conta Gabriela. Mas, no geral, as cartas versam sobre diminuição, comutação ou revisão de pena; andamento processual e dúvidas jurídicas básicas de quem não tem recurso financeiro para pagar a consultoria de um advogado. 

Caldeirão de sentimentos - Entretanto, na retórica dos encarcerados também há espaço para o amor: “Diretamente do vale da saudade, atravessando grades e muralhas onde o sofrimento é constante e a saudade uma rotina”, derrama um preso a sua amada, na esperança de que a defensoria interceda como cupido. Outro desfia, em letra quase ilegível, toda a via-crúcis do seu tratamento dentário na prisão, suplicando para que não perca mais dentes. 

“Dentre tantas histórias lidas, uma que me chamou a atenção foi a de uma reeducanda que afirmava ter consciência do erro cometido, mas que gostaria de saber se tinha direito ao regime semiaberto para trabalhar e ajudar a mãe que cuidava dos netos, mesmo com a saúde debilitada - fato comprovado com o envio de exames, receitas e relatórios médicos. O fato da presa reconhecer que o erro traz consequências e de querer cumprir o que a lei determina é ver o real objetivo das instituições carcerárias em destaque”, salienta Juliana. 

Enfim, as cartas que chegam ao STJ encurtam as distâncias entre quem está “vendo o sol nascer quadrado” e quem está livre. E nos recordam de que somos feitos de sentimentos. Sejam eles de conflito, dor, solidão, injustiça, desemparo, esperança, raiva, afeto ou pena.

Essas correspondências singelas e mal escritas são uma prova contundente de nossa débil humanidade. Juliana sabe disso e afirma: “Não deixo de sentir revolta ou me emocionar com algum caso, mas compreendo que meu papel não é julgar e, sim, dar acesso às informações aos que não têm e encaminhar as demandas que não são de competência da Seinp ou do STJ”. 

A sétima arte também faz das cartas protagonistas de histórias inventadas ou baseadas na realidade. Você já viu algum desses filmes? Se ainda não curtiu, coloque na lista #filmesparaverantesdemorrer

A Cor Púrpura (1985) 
Nunca te vi, sempre te amei (1987) 
O Carteiro e o Poeta (1994) 
Minha Amada Imortal (1994) 
Central do Brasil (1998) 
Uma carta de Amor (1999) 
A Carta Anônima (1999) 
A Casa do Lago (2006) 
Cartas de Iwo Jima (2006) 
P.S. Eu te Amo (2007) 
Querido John (2010) 
As Cartas Psicografadas por Chico Xavier (2010) 
Cartas para Julieta (2010) 
Todos os dias (2012)



Comentários

  1. Que legal, Lu, não sabia dessa área no STJ. Essas cartas devem ser emocionantes mesmo.

    Fabíola

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