Fernanda de Beauvoir

Eis que passa por mim, com sua simples altivez, a estupenda Fernanda Montenegro. Quase engasgo com o meu sanduíche de peito de peru, mussarela de búfala e saladinha. Quase vou lá tietar. Mas um flash de sensatez me deixou sentada onde estava, num café do boçal shopping Fashion Mall (com este nome já diz tudo). Esperava justamente ela, mas não ali nos corredores, como uma vovó elegante olhando as vitrines. Daqui a meia hora estaria de frente para a maior artista viva do país em “Viver sem tempos mortos”.

Foi deveras interessante perceber o quanto Fernanda é mesmo uma deusa do Olimpo das artes. Este encontro inesperado no corredor do shopping deu a prova definitiva de que não é preciso quase nada para alguém talentoso operar o milagre de se transformar em outra pessoa. O santo baixa em mínimas sutilezas. No tablado ela estava com a mesma camisa branca de gola que vestia ao passear pelo shopping. O que ela fez foi sentar numa cadeira, tirar os óculos de armação negra e prender o cabelo channel para parecer mais curto - como usava Simone de Beauvoir -, aquela que baixou em Fernanda meia hora depois, no palco, juro por Deus.

Dei muita sorte. Comprei o ingresso pela internet aqui em Brasília sem conhecer o teatro e, quando vi, estava sentada de cara para Fernanda, duas fileiras atrás. Bingo! Ela olhava diretamente nos meus olhos. O teatro pequeno, intimista como o monólogo exigia. Como disse uma mulher da plateia na minha fila um pouco antes das luzes se apagarem: “mesmo que ela só fale baboseira é a Fernanda, né? Já vale a pena”.

Vixe, e se valeu! Só assistindo à La Traviata em Nova Iorque eu ouvi e falei tantos bravos ao final do espetáculo. Fernanda era Simone, uma mulher intensa, controversa, profunda, genial. Em meia hora, entre o passeio no shopping e estar sentada naquela cadeira, quase imóvel, Fernanda era a companheira ideológica e sentimental de Sartre, relatando sua infância, adolescência, casos de amor, traumas, dissabores, alegrias. “A resignação não purifica os assassinos”; “O acaso sempre dá a última palavra”; nós somos (as mulheres) colonizadas por dentro”...

Fernanda, diva, nas lentes de Bruna,
filha da minha amigona Pattygirl
Em cada sábio pensamento de Simone, uma pequena mudança do ângulo do rosto, uma sobrancelha levantada, uma ruga a mais, lágrimas nos olhos. Assim era Fernanda de Beauvoir: precisa, contida, perfeita. Era a artista e uma cadeira. E tudo ficou do tamanho do palco. Aliás, ela era o palco, não havia diferença perceptível. Mimetismo. Fernanda/Simone estava ao alcance da minha mão, mas eu me jogaria aos pés daquela divindade sem medo de ser feliz.

O irônico nesta história é que no Rio a gente sempre pode encontrar deuses e monstros onde menos esperamos. Na fila do banheiro feminino, um pouco antes do início da peça, estava outra atriz: Carolina Ferraz. Ela estava logo à frente, conversando com uma amiga. Mignon, apertada numa calça jeans e trajando um prosaico rabo de cavalo amarrado com uma liguinha de camelô, eu poderia ter passado a mão na bunda da Carolina, para inveja do meu marido e de outros milhares de marmanjos espalhados pelo Brasil.

A televisão glamouriza as pessoas. As mulheres ficam mais inatingíveis do que são. Mais divinais. Carolina não é aquela coisa toda. Você não está entendendo. Apenas uma garota latinoamericana com dinheiro no bolso, magra e gatinha como centenas de milhares de meninas que vemos passear pelas calçadas das cidades. Minha cunhada e a irmã do meu amigo Cacau são tão comestíveis quanto Carolina, mas ela está na televisão e fica parecendo que é uma beleza de parar o trânsito sem a menor cerimônia. E o mais grave: recebe o título de atriz. Após ver FernandadeBeauvoir em ação, tenho sérias dúvidas se 90% das figurinhas carimbadas das tevês merecem tal honraria.

Claro para mim ficou que temos um patrimônio imaterial do tamanho de Fernanda. No final, seus “obrigados” comovidos e beijos atirados ao público com calor humano e dignidade ficaram gravados no meu peito. Transtornada, saí da sala aos prantos também desejando para mim “viver sem tempos mortos”.


Comentários

  1. Vim reler aqui suas impressões, para que o rosto iluminado de Fernanda de Beauvoir perdure por mais tempo em minhas retinas...

    Bjs
    Patty

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  2. Patty, também acabei de reler o meu texto e de reviver toda a emoção dessa peça...

    Foi um dos pontos altos da minha vida cultural. Enchi os olhos d'água e sigo perseguindo essa vida sem tempos mortos.

    Adoro você,

    Luzinha.

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  3. Lôô,
    Que legal, não escrevo respostas mas mando lembranças!
    Que privilégio ter visto isso de pertinho, hein?!?!

    Beijos,
    AnaCrônica

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