Rota Brasil

Mar... metade da minha alma é feita de maresia
(Sophia de Mello Breyner)

As longas viagens de carro são essencialmente filosóficas. Não por acaso Hollywood percebeu que rodar – literalmente – uma história poderia ser uma grande sacada. Os norte-americanos são privilegiados como os brasileiros, ou seja, eles têm todo um quase continente para explorar em duas ou quatro rodas, o que torna o apelo cinematográfico infalível.

Já pensou se a gente morasse na Argentina (não, tudo bem, vou pegar um exemplo menos polêmico) no Chile, vai. Que bobinho...No máximo em cinco anos – olha que eu estou fazendo uma conta para quem não tem lá muito espírito de aventura - a pessoa já teria varrido a terra natal de ponta a ponta, conhecendo tudo o que há de belo, excêntrico ou imprescindível.

Chapada Diamantina - BA
Ainda bem que a gente é brasileiro e precisa gastar umas duas encarnações para dar conta de cruzar o país e ver tantas maravilhas. Eu que viajo desde pequena – minha mãe também tem uma alma cigana –, já estou perto dos 40 e sigo rodando, ainda nem esbarrei em alguns estados. É uma loucura a imensidão dessas terras. Sempre que fico ali, no banco do navegador, me ponho a filosofar a partir das cenas que gravo na retina. Queria ter sangue de cineasta para transformar tudo o que já gravei na memória em um emblemático road movie.

Praia de Arembepe
Acabo de chegar das férias. Vinte dias sob o sol de Arembepe/BA. Ô paraíso! Desde a adolescência, eu não desfrutava da bênção de acordar e dormir ouvindo o ritmo das ondas. Alugamos uma casa de praia e lá se foi a família do firimfinfim curtir a baianidade nagô. Da antiga residência, o mar azul-esverdeado nos saudava como se fosse uma panorâmica. Parecia mesmo era uma tela descomunal do Pancetti, na qual brotavam barquinhos de pesca ali e acolá nas cores brancas, vermelhas e amarelas. Paz igual a da felicidade me invadiu, pois sou marítima por natureza, apesar de ter nascido neste planalto central.

Ficar ali de bobeira (quando os filhos permitiam) sentada no muro da varanda, olhando o mar em seu cadente movimento, funcionou mais do que qualquer terapia intensiva antiqualquercoisa. O mar e eu, eu e Omar. A gente se entende. A gente conversa telepaticamente. Não tenho um peixe tatuado na pele à toa. E a Bahia, para os que têm uma quedinha pelo esotérico, é um prato cheio de camarões, dendê e orixás para místico nenhum sentir fome. Reabasteci minhas simpatias por São Jorge, Iemanjá e Ogum.

Ensaio do Olodum no Pelourinho
Fiquei tão zen que até fui a um show do Chiclete com Banana. Foi a melhor aula de aerobahia que eu já fiz e, provavelmente, a última. Como um lance tão chiclete pode atrair uma legião de afixionados há tanto tempo? Impressionei-me com a idolatria que Belo e cia ainda provocam no público. Também teve espaço para a batucada do Olodum pelas ruas do Pelô. Negritude convicta, de beleza radiante. Ir à Bahia é louvar a África que corre no peito e nos faz entrar em transe ao ouvir o tumtumtum. Tambores multicolores alertam: racismo faz mal à saúde.

Mas uma viagem que se preza começa mesmo é na viagem. De carro, de preferência. A gente vai acalentando os sonhos, as surpresas, as expectativas pela estrada. Não existe melhor aula de geografia. Cerrado, veredas, Mata Atlântica, mata de transição, traços de caatinga. São rios, e o mais querido de todos eles, o São Francisco, ali, te esperando debaixo da ponte.

A gente vê de perto a realidade das novas fronteiras agrícolas como a que está enriquecendo o extremo sudoeste da Bahia e a cidade de Luiz Eduardo Magalhães. Quilômetros de soja, milho, algodão e outra vez uma mega tela na qual agora os bóias-frias tomam o lugar dos barquinhos e salpicam as plantações com um trabalho duro, amargurado, algo mais no estilo de Di Cavalcanti.

Máquinas que parecem seres extraterrestres passam por nós em suas tarefas de tornar a colheita perfeita. Aviõezinhos Ipanema da Embraer – os tratores do céu – pulverizam veneno em baixas altitudes. Um deles veio planando em nossa direção no meio da rodovia. Momento de susto e diversão. A economia do país por ali vai bem. A gente toca a prosperidade com a mão.

Entretanto o quarto mundo ainda resiste nas dezenas de povoados esquecidos no meio da paisagem, suas casas esmaecendo com o pó que cobre tudo. Moscas nas comidas, meninos descalços e barrigudos, nenhum sinal de escola nas proximidades. A velhinha vende suas seriguelas na beira da rodovia escaldante. Eu compro e proseio. Aquelas eram das boas, “pois cresceram com a água no pé”.

Brasil, meu road movie é amar e odiar seus contrastes. É seguir viajando com a poesia do mar e a fúria do sertão.

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