“Minha vida é andar por este país...”



Nunca havia visitado o Nordeste fora do verão. É como estar em outro lugar. O estado de espírito da região nesta época de inverno é totalmente diferente. Fiquei bolada, sacou? Não? Nem eu, até conhecer Aracaju e descobrir que estar bolado é o mesmo que estar chocado, passado. O regionalismo linguístico é algo fascinante. As vivências culturais que levam uma comunidade a usar determinadas expressões...Quanta nuança a ser descoberta em cada cidade que ousamos conhecer!

Fui até a padaria da esquina da rua em que me hospedei, que não por acaso chamava-se Augusto Franco. E aqui abro um parêntesis para me indignar com o ranço coronelista que ainda mostra a sua cara em vários estados nordestinos. Estas famílias que dominam a cena política por séculos e fizeram de tudo, menos melhorar a vida de seus conterrâneos. No Maranhão, o embrulho no estômago é grande com aquele ode eterno ao clã dos Sarney. Em Maceió, os Bulhões, os Liras, os Mellos dão nome a hospitais, ruas, praças, ginásios de esporte...Na Bahia, graças a Deus, parece que nenhum filisteu terá novamente a força do ACM e, em Sergipe, lá estão os onipresentes Francos. Dezenas de logradouros públicos batizados com este sobrenome. Que coisa arcaica! Gostaria de viver para testemunhar o Nordeste livre deste cabresto...

Mas, voltando ao ramo da panificação, visitar padarias é uma ótima dica turística. A gente capta muito da natureza do povo ao comprar um pãozinho. Cheguei junto ao balcão e pedi para a atendente: “me vê quatro pães, por favor”. Ela olhou pra mim um pouco confusa e retrucou em legítimo sotaque sergipano: “Pão %@#*?” Hã? Mas que língua era aquela? De repente, me senti estrangeira no meu próprio país, recordando a saia justa que passei em Nova Iorque quando pedi um café no Starbucks e o balconista estampou aquela cara de tédio que dizia: “mas qual café entre as 500 opções disponíveis, todas de sabor igual no final das contas?”

“Pão $&!+?” Insistiu a mocinha, e eu só não fiquei petrificada de vergonha porque a padaria estava vazia e não havia uma fila de pessoas com cara entendiada atrás de mim pensando: “de onde surgiu esta idiota?”. Aí apontei para a cesta lotada de pão francês que me parecia tão óbvia e ela, enfim, ensacou meus pãozinhos. Quando cheguei ao caixa, ouvi outro cliente pedindo: “dez pães Jacó”. Eureca! Então era Jacó!!! Como é que eu ia saber que em Aracaju o pão nosso de todo dia se chama Jacó e Jacó falado em legítimo sotaque rápido no gatilho dos sergipanos?

E a padaria ainda me reservava grandes ensinamentos. Passei a mão em um pedaço de requeijão, num potinho de curau e no caixa descobri que curau, ali, se chama canjica. E canjica se chama munguzá. Ou seja, tudo diferente das minhas origens goianas, isto é, uma delícia. Viajar é isso: sair do seu mundinho confortável e arriscar novos olhares sobre o mundo.

Com este espírito, descobri o Nordeste em pleno ritmo junino. Ma-ra-vi-lho-so! Santo Antônio, São João, São Pedro... Lá, este trio vale mais que papai noel. Quem me fez esta revelação foi Karlos com K, o hair stylist que repaginou meus cabelos. Ele me contou, entre uma luz e outra, que em Aracaju as festas juninas são mais importantes que o Natal.

Pensando bem, tem toda razão de ser. Esses santos são sinônimo de verdidão (meu lado Guimarães Rosa: verde + vastidão); de fartura no sertão coberto de plantação tinindo de bonita. É, portanto, momento de festejar a “invasão clorofilática” com muita alegria, dança e música. A cidade toda se cobre de bandeirinhas. O barulhinho flopflop dos papéis ao vento preenche o ar e em cada esquina tem um trio de forró incitando a gente a cair no forró. Acredite, mas eu dancei até no meio do corredor do shopping!

A febre junina é tão poderosa que não resisti e comprei um exclusivo Dolce&Gabana sertanejo no mercado municipal Antônio Franco (não disse?). Lindamente desenhado e ornado por Dona Jovita, uma senhora de 65 anos com cansaço de 80, que chega a produzir 150 vestidos caipiras nesta época do ano. Detalhe: todos únicos. “Nossa, parece que fui na sua casa tirar suas medidas!” E parecia mesmo. O traje ficou perfeito e eu não pude resistir a ter no meu armário esta peça valiosíssima da cultura nacional.

figurinos adquiridos no Mercado Municipal de Aracaju
 Entretanto a cereja do bolo da viagem ficou mesmo para o passeio ao canyon do Rio São Francisco. Não sou nordestina, mas o velho Chico embala minha alma mais do que o Araguaia. Como ele, só o Corumbá a me inundar de sentimentos bons. Águas xamânicas revolvendo meus instintos ancestrais. Entro em sintonia com os índios que habitaram suas margens e correm nas minhas veias e nos meus olhos puxados. Rio das minhas outras vidas, da resistência contra as adversidades, das carrancas que me afastam de todo mal...

Embarquei no catamarã “Rei do Cangaço” e naveguei emocionada pelas águas verde- limonada. Logo os paredões se apresentaram em seu deslumbramento multicor. Laranja, ocre, creme, vermelho, cinza-chumbo, musgos, cactos...Havia outra passageira usando roupa idêntica a minha, embaraço inédito que quase me desconcertou. Todavia a beleza do canyon me fez esquecer desta cilada do destino e de qualquer outro traço de (in)civilização. Ali eu era elemento tribal, força da natureza, um grãozinho fustigado pelo vento no “Paraíso do Talhado”.
             

Comentários

  1. Bom Dia!

    Fui ao se texto, gostoso de ler como sempre, e vocês estão ótimos na foto.
    Beijos, saudade, até breve, assim espero.
    Um Junho animado e repleto de festas joaninas/juninas - com o vestido e muita dança, balões e quentões.

    Guti.

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  2. Cara Luciana, fiquei muito feliz com o seu texto. Você escreve muito bem! Claro que minha terra merece os melhores adjetivos. Não há lugar como Sergipe Del Rey. Observo que na verdade nunca pensei que "bolado" fosse de lá. Quando morava lá, eu não falava isso não. Parece coisa de surfista carioca. Deve ter sido transmitido pelos Brothers. Agora o Pão Jacó realmente não se encontra em outro lugar. E este, cá pra nós, é o verdadeiro, real e mais apropriado nome para o pão. Acrescento outras expressões que vocês aqui embaixo não conhecem. O sergipano não vira cambalhota, vira mariascombona. Ao expressar surpresa, estranhamento ou indignação, prefere invocar o Cabrunco (de Carbúnculo), o Cancro (Câncer) ou outras moléstias. O brasiliense, como sabemos, prefere aludir ao poder fálico: "carái véi! Porra! E por aí vai...
    Aula particular lá é banca. Então você vê letreiros nas casas assim: "Dá-se Banca".
    Felizmente os Franco não tem mais o mando político que tinham há 40 anos atrás. Aprenderam a dividir. Enquanto as ruas de lá não virarem W3 ou L2, vão ficando seus nomes.
    Mas é isso. Parabéns. Espero que volte pra lá um dia de inverno e que haja fogueiras pelas ruas em festa.

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    Respostas

    1. Caro Thiago, bem-vindo ao blog!

      Obrigada pelos elogios! Se eu consegui passar um pouco do espírito da sua terra pelo texto, fico muito contente.

      Um grande abraço,

      Lulupisces.

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  3. O comentário é meu (Thiago) e não do Inácio...

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