Atenta aos sinais



Vazio ou Saudade? Sempre as dualidades. Não à toa Cecília Meireles escreveu um de seus poemas mais célebres exatamente sobre esse eterno dilema humano: “Ou isto ou aquilo?”
Lembrei de Rômulo perguntando "mamãe, de que o Exupéry gostava mais: escrever ou pilotar aviões?" As crianças e sua maneira dual de entender o mundo. Seus “pretos nos brancos” a colocar em xeque as nossas estruturas.
Pois então, entre vazio e saudade, sem dúvida a saudade me faz mais companhia. Mas não pensem que foi simples chegar a esta revelação. Mais de ano na análise e o papo com uma amiga de longa data me descortinaram da névoa que levou metade do que vivi para se dissipar.
Agora, aos 54, enfim compreendi. Posso discernir a diferença entre vazio e saudade e não misturar os sentimentos que um e outra proporcionam. É como se eu tivesse feito uma cirurgia de catarata e voltasse a enxergar limpidamente. Clarear me deixou mais leve. Me tirou toneladas de dejetos do peito.
Assunto recorrente na terapia era não querer fazer parte das memórias afetivas e dos apegos das minhas irmãs em relação ao meu pai, ao passado que elas viveram com ele. Aquilo batia em meu coração de forma artificial, tipo lembranças fabricadas e introjetadas, um total recall que não me dizia nada.
Me sentia culpada, claro, por não conseguir me conectar com este legado que, na verdade, nunca foi meu. Veja que coisa absurda, não? Me sentia uma verdadeira filha ingrata, a menina mal-agradecida.
Entretanto, o que levei metade da vida para entender é que eu jamais terei o amor que minhas irmãs cultivaram em dez, quinze anos de convívio com aquele homem que, para mim, é uma imagem no papel. Meu pai será sempre O vazio. Não posso sentir saudades do meu pai. Saudade vem da ausência de alguém com quem você construiu uma relação de afeto de qualquer natureza. Eu não tenho reminiscências pessoais sobre Rondon Herculano de Assunção, que morreu quando eu nem sequer completara 1 ano.
Portanto, meu pai é um buraco negro, um oco. Não há nada que eu possa fazer a esse respeito a não ser me contentar com as “soul colagens" de quem teve a sorte de lhe sentir por perto. E tá tudo bem. Não preciso me sentir péssima ou fingir que amo meu pai.
Toda esta clarividência veio nestas últimas semanas, depois que minha amiga me enviou a seguinte mensagem:

“Não gosto muito da Tati Bernardi, pois ela fala mais que o entrevistado e muito de si própria. Mas focando na Denise Fraga, tudo que ela conta é muito lindo e triste ao mesmo tempo. Acho que você, que é do “clube das mães mortas”, vai gostar como eu gostei.

Respondi:

[11:55, 6/26/2025] Lu Assunção: Eu não parava de comer chocolate para trazer minha mãe de volta. Quase adoeci, cheguei ao ponto de ser diabética. Estou aqui ouvindo o podcast (Denise Fraga e o luto de um amor infinito pela mãe).

[11:56, 6/26/2025]Lu Assunção: É terrível falar Mãe e não ouvir uma resposta. 🥹🥹🥹

[11:59, 6/26/2025] Lu Assunção: A perda de uma pessoa idosa é a perda de uma montanha. Sinto exatamente isso em relação à vovó Paula e à Dindinha. Elas eram massivas. Fortalezas. Espartanas nos afetos, mas profundamente ricas por dentro.

[12:09, 6/26/2025] Lu Assunção: Mamãe tinha esses delírios, era uma coisa bonita e doída ao mesmo tempo. Eu não aguentava ficar ao lado dela em sofrimento. Eu escapava. Às vezes me sinto culpada por isso. Mas sei que minha alma de passarinho abandonado não dava conta mesmo. E a Leila e a Núbia eram muito melhores do que eu para lidar com aquelas escaras, com aquela decrepitude horrorosamente cruel.

[12:27, 6/26/2025] Lu Assunção: Mamãe também era muito livre e fazia tudo que lhe dava na telha. Eu conheci essa mãe liberta do jugo machista do marido. Era uma doida! HaHaHa. Viajou sozinha para a Amazônia na década de 1980. E para os EUA. Um mês sem dar notícia alguma. Para uma criança, é avassalador. Mas hoje entendo a necessidade dela dessa leveza.


[13:52, 6/26/2025] Mônica: Essa experiência de ver mulheres tão fortes indo embora é uma paulada. Mas como disse a Denise, também é uma vivência pra se sorver devagarinho e muitas vezes, pois é muito rico apesar de dolorido e triste. Que bom que você compartilhou comigo suas impressões. Bjo.


Seguimos neste processo terapêutico entre amigas órfãs em tenra idade, e ela me enviou uma postagem sobre uma cartunista que perdeu o pai aos 14 anos e sentiu a dor de nunca chegar a conhecê-lo completamente como pessoa, não apenas como guardião/responsável. Então ela começou a pedir sinais para ele de que estavam juntos, ainda que separados pela morte.

Ela começou a encontrar os tais sinais, o que batizei de conexões telúricas, e isto lhe ajudou a lidar com o luto e a ficar conectada ao pai ao longo da vida.

Que sacada para mim foi admitir: não tenho absolutamente nenhuma memória ou laço com o meu pai. Como pedir sinais para alguém de um relacionamento que não houve? Jamais saberei como meu pai era como pessoa e, principalmente, como MEU pai, e não como se comportava como o pai dos meus irmãos.

Todavia, posso clamar pelos sinais de minha mãe, de minha madrinha, de minha sogra. Me dou o direito de pedir que elas me enviem indícios de suas amadas e saudosas presenças. Sei que elas velam por mim e pelos netos. Rogo a elas sempre que viajo de avião, por exemplo. Isso me acalma.

Destas três mulheres-montanhas eu sei muito bem o que é sentir saudade e amor. E isso me reconforta, pois os sinais delas estão na minha caminhada. E sentir saudade, sem dúvida, caro Peninha, é definitivamente muito melhor do que caminhar vazio.


Comentários

  1. Massa demais!
    👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

    Rodrigo Holanda

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  2. Poxa Lú, que lição você me deu. Sempre que converso com Pedro sobre pai me lembro de você, sempre você vem na minha mente.
    Agora vou poder falar do vazio de outra forma, obrigada por tantos ensinamentos, nada é por acaso na vida.😘

    Renata Queiroz

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  3. Lindo texto, Lu! E obrigada pela mensagem. Saiba que, em nosso encontros, também aprendo muito com você. 🌼🥰

    Alessandra

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  4. Gostei muito do texto. Muito tocante.

    Karla Liparizzi

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  5. "A vida é muito curta para ser pequena"! Você faz a vida ser longa e grande! Vamos ficar velhinhas juntas?!💞

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  6. Oi Lulu, li seu texto ontem e fiquei pensando, pensando , pensando no que lhe dizer . Acabei não dizendo nada, por não achar palavras à altura do seu sentimento..
    Mando hoje aqui um abracinho atrasado, mas em tempo de dizer que sua amizade é muito importante pra mim .
    Feliz dia do amigo 🌺🥰

    Clarice Veras

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  7. Bom dia, Lu. Que texto profundo e lindo.
    Assim como vc, também perdi meu pai muito nova, com 2 anos e 7 meses e não me lembro dele vivo. Tenho uma gravação em fita cassete, na qual conversamos juntos, que considero um pequeno tesouro (ele gostava de gravar as coisas).
    Adorei a palavra mulheres-montanha que vc criou. Tb tenho a sorte de conviver com algumas delas no sertão: destaco mainha, minhas madrinhas e minha tia Cícera.
    Me enxerguei muito no teu texto.
    Sigamos pelos caminhos da escrita que traz leveza para a vida.
    🙏❤️

    Raiza Figueiredo

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