Elementais




Obsessões por peixes, por conchas e
por águas insones.
Impossível resistir às suas representações, ainda mais as singelas, como sonhos infantis.
Gosto de tapeçarias. Fazem parte das memórias da minha meninice órfã de várias doçuras.
A irmã dez anos à frente tinha todos os talentos que a mim faltavam e me eram caríssimos: tocava clarineta, lia partituras, desenhava, falava com gatos e com cachorros, costurava, projetava móveis, desfrutava de um "três em um" com dois toca-fitas e tecia belas tapeçarias.
Nunca fez uma para mim. Era como uma das filhas da madrasta. Alimentava um ciúme rancoroso da boboca criança, a cria derradeira de uma mãe viúva, e não perdia a chance de me atormentar.
Minha irmã foi abandonando a maioria dos presentes que recebeu da genética ou do destino. Um desperdício triste.
Eu cresci sem qualquer dom especial, entretanto escrevo e meus males decanto.
E também me alegro com uma peça bonita como esta, obra de uma poeta porreta contemporânea que já passou dos 60 anos (o que prova que o etarismo não tem nada a ver) que curto bastante: Ivana Arruda Leite.



Vislumbre

Os músculos em atividade são plásticos

mordiscáveis.

Pulsam

corações expostos.

A patinadora anciã tem um jovem pássaro na garganta.

Espanta.

O trinado voa de seu corpo talhado

gorjeios potentes.

Suor, labor, 

louvor à natureza animal em nós.

Alguns seguem indiferentes

ao vislumbre itinerante.

Pena.



Marciana

O sol se põe ou a lua nasce?

A poeira sobe e se encaixa ali na beirada do horizonte, 

onde quem é plano enxerga o fim.

Não deixa mesmo de ser distópica

a Brasília ressequida. 

Fritamos.

Tossimos.

Se não fosse o azulão do céu 

dava para pensar que colonizamos

Marte.

Mortificamo-nos. 

Ai se eu pudesse…

Andava com os olhos no topo da cabeça.
Só mirando os tais rios aéreos,

mergulhando nas profundezas

de suas margens largas.

As águas onde tudo flui são verdes.



Comentários

  1. “olhos no topo da cabeça “🩷lindo demais!!!
    Cynthia 🙏🥰

    ResponderExcluir
  2. Achei tão triste! Receba um beijo carinhoso 🌹

    Ângela Sollberger

    ResponderExcluir
  3. Amei seu texto , apesar de triste ...
    E as fotos ? Como combinaram 🥰🥰... é um tico-tico ? Pardal?

    Karla Liparizzi

    ResponderExcluir
  4. não aguento você com a sua infância. ;) Para mim foi a adolescência, credo, época esquisita, até hoje não sei dizer se foi boa ou ruim.
    Também não tenho dotes, minha mãe inibiu, queria que pensássemos. Nada de trabalhos manuais.🫣

    Renata Assumpção

    ResponderExcluir
  5. conheci algumas histórias assim... acho que a vida às vezes se repete. Uns que tudo tem, desperdiçam... outros, se reinventam. Aliás, dizem, que a criatividade é fruto da falta.

    Isabel Frantz

    ResponderExcluir
  6. Oi, Lu, bom-dia! Que belo texto!

    Raiza Figueiredo

    ResponderExcluir
  7. Sua prosa-poesia é um espanto de construção de imagens e de ritmos.

    Nirlei M. Oliveira

    ResponderExcluir
  8. "Por isso escrevo e meus males decanto"
    Adorei!

    Ana Cristina Tavares

    ResponderExcluir
  9. Esses diálogos-troca que vc faz são tão bem-vindos... Ler vc é um prazer. Bjão. Continue! Sua escrita só faz bem!

    Cristina Porto Costa

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos

Coisas da vida