Desavisado

Ao contrário de tanta gente, ela não tem o costume de entrar no chuveiro assim que acorda. Prefere um banho noturno, relaxante, antes de dormir. Pela manhã não gosta de sacrificar minutos a mais no café-da-manhã saboreado com mais calma, geralmente sozinha, pois logo sai para o trabalho.

Hoje fez diferente. Tomar uma ducha, se animar, é sexta, seu dia preferido, é Carnaval, feriadão, alguns bloquinhos, descanso ali no horizonte, desfrute.

Da metade para o final da ducha, notou uma mancha no fundo da banheira ali do lado, Cinco graus de miopia, tudo que via era isso: um borrão. Nossa, está sujo, registrado.

Pegou seu frasco de óleo corporal, uma mulher cremosa que não vive sem hidratação em profusão.

A tampa do frasco caiu das mãos na banheira. A sujeira se mexeu.

Deuses, ela se enrolou na toalha às pressas e vazou do banheiro. Ainda bem que o homem da casa ainda estava em casa. Homens da casa são imprescindíveis nesses raros momentos de covardia feminina.

Olha, tem algo ali na banheira, sei que é um bicho, mas não reconheci sem óculos.

É uma barata? Sei lá, não quero saber. Que pergunta indigesta antes do meu café.

O marido se mune de um inseticida e vai espiar o borrão.

O borrão se revelou um escorpião.

Um escorpião!!! Não!!! Jamais antes um escorpião. E eu pegando a tampinha do óleo ao lado dele. Cacete!

Nunca não ver sem muletas, pernas, alças, foi tão angustiante. Bem que eu vi que não era uma barata. As baratas sou capaz de reconhecer a metros de distância sem artifício algum. Aquela repugnância que vem pelo ar (às vezes literalmente).

Supus uma pererequinha, uma lagartixinha bem-vindas. São escorregadias e geladas, porém, inofensivas, nenhum recalque da minha parte. Ontem falávamos do tema na terapia e eu pensava qual teria sido a minha experiência com uma barata na fase pré-linguagem para me deixar tão absolutamente terrificada com esse inseto…

Escorpião morto, posto. Imaginei se fosse Miúcha, a gata intrépida, a dar de cara com ele antes mesmo de eu entrar no banho. Estaria morta, a bichinha.

Eu, que escrevi mil alertas sobre escorpiões para o mural da antiga seção onde eu trabalhei, no térreo, ao lado de um exuberante jardim de Burle Marx. Repentinamente, o infame estava no meu banheiro.

É pelo ralo que sobem. (Até o terceiro andar? Malditos!) É preciso deixar todos os ralos fechados sempre, vaticinou a diarista. Eu tenho pavor de escorpião e de lacraias, avisou.

Eu não tenho não, todavia também não os quero em visita desavisada, aliás, nem com hora marcada. Temi com dor no peito pelos gatinhos.

Ao mesmo tempo, lembrei de que tudo pode virar uma história com aquelas do podcast “Garrafas ao Mar”, que por acaso ouvi ontem porque uma amiga me enviou. Sou tão obtusa nessas paradas digitais audiovisuais que não vou atrás, só mesmo do trio elétrico, pois ainda não morri.