Reverência


 Para mamãe, na antevéspera do 12º aniversário de sua partida


Das pessoas que amamos não permanecem apenas os grandes gestos e os momentos marcantes. As prosaicas ações latejam na memória e reacendem as fagulhas da saudade, ao remexer no baú empoeirado de cartas, cartões e declarações de amor.

Em meio às dezenas de agendas/diários; centenas de bilhetes em guardanapos, folhas de caderno arrancadas com segredos e até telegramas de um passado que parece irreal, dou de cara com o boletim do terceiro ano do primeiro grau da aluna do 3ºB, do turno vespertino do Instituto de Educaçāo Integral (Inei), o ponto fora da curva da minha vida escolar, quase exclusivamente transcorrida no Colégio Notre Dame.

É um boletim bonito, repleto de notas SS (aproveitamento superior). Naquela época, a sigla não remetia os alunos aos horrores da Alemanha nazista, muito pelo contrário. Era o sonho da turma tirar SS em todas as matérias ou, no máximo, MS (aproveitamento médio superior). Confesso que escrever essas letras agora me deu um certo desconforto ético, além da real dimensão do conceito avaliativo militarizado forjador de uma visão de mundo hierarquizada nos corações e mentes juvenis dos prováveis "tios do pavê" que elegeram Bolsonaro. O ovo da serpente da lenda urbana chamada meritocracia estrita.

Nunca fui santa. Apesar de boa aluna, era o terror da sala de aula. Desestabilizava professores e coleguinhas com conversas paralelas e com um ímpeto desafiador de autoridade rotineiro. Na dimensão social, a disciplina me rendeu apenas um MM em todos os quatro bimestres do ano letivo. Ou seja: “passei raspando em comportamento”.

Mas naquele boletim também existe a prova de que eu talvez soubesse alguma matemática aos nove anos. E de que já joguei xadrez. Ambos com SS de fevereiro a dezembro. Para onde vão os conhecimentos adquiridos e desperdiçados, se o que o que ficou do Inei foram: o lanche matinal, pão francês com carne moída; o primeiro bilhetinho de amor escrito pelo garoto do 4º ano; a melhor amiga Cristiane, ruiva com os olhos azuis mais deslumbrantes dentre todos que já vi; a tia Grace, cujo nome não poderia ser outro, e a descolada aluna Vanessa a colar, com durex, uns matinhos verdes do pátio nas alvas axilas, no intuito de imitar Baby Consuelo, hoje Baby do Brasil, decepcionante em sua atual persona de cidadã reacionária.

Toda essa tergiversação bolorenta veio à tona com a imagem amarelada do tal boletim. Há tantas caixinhas cerebrais precisando de uma espanada. Memórias danadas que não sabemos que estão lá até serem liberadas num jorro de sentimentos atropelados pelas lágrimas.

Observo o verso do documento. A assinatura do pai ou do responsável (olha o patriarcado). Eu, vinda de um matriarcado de mulheres fortes a se contrapor a homens diluídos, me sentia ainda mais exótica na escola de pais abastados casados com mulheres elegantes com dois, no máximo três filhos bem nascidos na tradicional família brasileira.

Minha mãe, viúva, era uma mãe-solo de seis jovens e de uma fedelha. Nenhum dos meus amigos tinha seis irmãos. Nenhum deles era órfão de pai. Todos eles cresceram sob a batuta da figura paterna provedora.

A assinatura de mamãe. Ciente de que a raspa de seu tacho era inteligente, porém rebelde para os padrões femininos de então e, por isso, fora matriculada naquela instituição severa semi-interna voltada aos filhos da elite brasiliense. “Quem sabe ganha modos”.

A letra inconfundível, indelével e tortuosa da mulher que pouco escreveu nas carteiras escolares, mas tudo sabia acerca da vida de verdade. A assinatura de mamãe foi o que mais me comoveu no boletim de 1980.

A mão direita calosa e manchada de sol de Maria - apenas Maria, sem complemento, como a prever o destino aguerrido daquela parideira tenaz - assinou tantas folhas de cheques, recibos, documentos em cartórios, autorizações e boletins, sempre sob o olhar atento da filha caçula. A apresentação do boletim, contudo, era o acontecimento máximo daquela rotina, repleto de orgulho, ansioso por reconhecimento.

O cheiro e a mão da mamãe tornaram-se quase palpáveis. Assim como se materializou a silenciosa face da matriarca que tinha a certeza de que a filha jamais faria menos do que as menções ali demonstravam. Ela confiava em mim, me criou para aguentar o tranco.

A filha, no entanto, esperava o afago na cabeça, a afirmação do afeto tal qual um cão leal, embora desobediente. Todavia o gesto não viria daquela mãe felina, instintiva. Jaguatirica altiva sem tempo para amenidades e inseguranças.

A assinatura da minha mãe, completa, o Maria devidamente afastado do Cruz, pois ela não guardava rancor de nada, me transborda de pertencimento e de compreensão.




Comentários

  1. Maravilhoso!

    Rosângela Maria de Oliveira

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  2. É lulu as vezes me pego com lembranças boas e ruins de época antes do seu nascimento e depois 😘 Aí surgiu um bebê pra cuidar 🍼E hoje taí uma mulherão com família linda em busca do melhor pra todos. Sempre justa em tudo que se propõe a fazer🥰

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  3. Uhuuu! Muito bem escrito o texto! Arrasou!

    Karol Simões

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  4. Lembranças e saudades lindas!

    Cynthia Chayb

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  5. Adorei, Lu! Perfeito o trecho final ilustrado com a assinatura da dona Maria, longe da Cruz...

    Mônica Ramos Emery

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  6. É, minha amiga, esse boletim despertou fortes lembranças.
    Um beijo,

    Paulo Magno

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  7. Bonito texto.
    Hoje eu estava lavando a garagem e sentindo o cheiro da comida que estava sendo preparada pela mamis. Parei e pensei: como esse cheiro me fará falta.

    Ana Paula

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  8. Emocionante, verdadeiro, real e familiar. Que Deus lhes abençoe continuamente. É uma viagem textual e cênica que vocês compartem conosco. Muito obrigado.

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  9. Emocionante, Lu!
    Ontem minha mãe faria 87 aninhos.

    Clarice Veras

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  10. Que história linda! Emocionante, afetuosa e cheia de saudades.
    É 10 viajar com vocês nas fotos e nos textos.

    Davi Santos

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  11. A mais nova e linda constelação.
    Sem palavras...

    Jandira Costa

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  12. Dos mais lindos que vc escreveu!!
    A frase do início (passado é referência, não residência) me lembra de um vídeo que eu assisti do Dunker (o mesmo psicanalista que eu te mandei o vídeo) falando que o passado não é fixo... que conforme a gente faz análise, o passado muda! Eu fiquei tão impressionada com aquilo e vi tanto sentido. Sabe, Lu, daquelas coisas que a gente vê todo sentido e se pergunta "como eu não pensei nisto antes?".

    Bianca Duqueviz

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  13. Será que aquele espação entre o Maria e o Cruz era deliberado? Consciente? Será?
    Cara, essa história do durex no sovaco é boa demais.
    Demais.

    Valdeir Jr.

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  14. Muito lindo, Loo 🥰 Salve, tia Maria!

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  15. Emocionei-me com o seu texto sobre a sua mãe. Que mulher admirável! Fruto caiu grudado na árvore. Porque vocêé uma mulher uber admirável. Lindíssimo texto!

    Maura

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  16. Sensacional! Como sempre...viajei no tempo! Dá uma saudade ❣️

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  17. Que texto lindo!

    Claudia Boudrini

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  18. Só saudades... Tudo que vc escreve é sensacional...

    Ambrosina Militão

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  19. Somente hoje consegui abrir. Te amo minha pequena e grande escritora. Sou sua fã. Bjs carinhosos tia Maria Helena

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  20. Esse seu dom de colocar os sentimentos nas palavras é único!!!!! Parabéns demais"!!!! Fez-me lembrar da minha mãe, do meu avô e de tantos outros que partiram.... Da sua fã n. 1: Anna Gabis!

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