Voçorocas


Sempre queremos o melhor entre dois mundos possíveis, quiçá, impossíveis. A natureza humana é egocêntrica, como se tivéssemos o direito de exigir além dos 100% que nos cabe. Esperamos mais e mais dos outros, dos relacionamentos, da Terra. Sugamos, sugamos, sugamos com uma fome infinita de tudo que nos faça apenas cócegas e cafunés.

Não queremos a pandemia, mas a rua vazia de carros, sim.

Não queremos o isolamento, mas o trabalho remoto, sim.

Não queremos nos contaminar, mas adoramos “esquecer” das máscaras, a nova burca.

Não aguentamos os filhos em aulas-remoto, mas não queremos valorizar a Educação feita de professores de carne e ossos.

Não pretendemos acabar com água no planeta, mas não abrimos mão de nossos banhos de 40 minutos.

Não suportamos ser importunados por pedintes em nossos momentos de lazer, mas nada fazemos para diminuir o privilégio branco, a desigualdade social abissal que nos esbofeteia todos os dias.

Estufamos o peito para falar de nossas florestas, mas permitimos que os latifundiários transformem qualquer hectare em deserto verde.

Reclamava do excesso de árvores que roubavam a luminosidade do apartamento. Agora começo a sentir falta do pau-ferro majestoso que me ofertava sombra amiga na altura do terceiro andar.

De tão gananciosos que somos, seres humanos demandantes e indulgentes, a natureza resolveu também mostrar seus desvios de personalidade. Está cada dia mais gulosa, furiosa, destemperada.

A gente acreditava na utopia de que uma doença global e fatal poderia mudar, enfim, os desejos autodestrutivos da humanidade. Acordamos para presenciar outros patéticos jogos de guerra, outros linchamentos de pretos, outros feminicídios e outros desmatamentos vis.

O mundo segue assombrado pelos demônios da estupidez antivacinas, antitolerância, antidesperdício, antidiversidade. E no Brasil, a erosão já é voçoroca.

Assim tropeça o país tropical que um dia achou ser abençoado por Deus. Habituamo-nos a nos vangloriar sobre a beleza das nossas cascatas e de nossas mulheres, todavia, não passamos de um país farsante, cascateiro, que dizima mães e jovens, rios e nascentes.


Tem dias que acordo

e a única coisa que queria dizer,

é que gostaria de continuar dormindo.

Mas o tempo é algo tão valioso

e a vida tão efêmera

que prefiro andar de mãos dadas

com a melancolia

do que dormir de conchinhas

com a covardia.

Sergio Vaz




Comentários

  1. Quanta vdd Lu...
    Ótima reflexão! Hj foi 1 dia difícil pra acordar. Mas, bora lá, sigamos...

    Maria de Fátima Venceslau

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  2. Não temos mais tantos motivos para nós vangloriar das nossas matas e florestas, rios e cascatas, povo marcado, mas povo feliz. Precisamos nos mexer, se é que queremos mudar alguma coisa, ter um mundo melhor para as novas gerações.
    Sigo com esperança de dias melhores.

    Tania Benn

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  3. Texto certeiro, Lu. Assim caminha a humanidade: paradoxal!

    Cynthia Chayb

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  4. Muito bom o texto. Vivo nesse "país das maravilhas" há muito tempo, mas até hoje me revolto!

    Paula Mello

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  5. Muito bom texto, se houvesse reflexão nesse país, acho que estaríamos melhor.
    Sinto pela sua árvore, espero que seja plantada uma ou mais em seu lugar.

    Renata G. Assumpção Queiroz

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  6. Oi Lu , forte seu texto . Tá osso mesmo minha amiga : (

    Clarice Veras

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  7. muito legal!

    Luiz Carlos Scotti

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  8. Bom D+ refletirmos com você cara Luciana, também eu em muitas manhãs ao acordar me digo - coragem Maria Augusta, levante-se, vá à vida! mesmo estando tudo tão difícil! Grata pelos seus escritos que nos fazem tão bem, abreijos, Guti.

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  9. Caramba! Essa foto é muito sensacional! Ela sozinha é um baita texto! Hehehe
    Isso me lembrou uma sequência de fotos q já vi
    De um terreno com árvores, depois as árvores derrubadas e por fim a instalação de um toldo
    A insatisfação humana e a burrice demasiadamente humana vão cobrar um preço.

    Arthur Lima

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