Calor Latente






“Escalo o flanco de um vulcão entalhado no gelo, 
calor extraído do poço de devoção que é o coração de uma mulher”.
(Patti Smith)


Sol de canetinha amarelo-ouro. Três da tarde. A mulher sai do útero úmido e morno da massagem ayuvédica para o mundo cáustico de um dia rascante. Olha para os lados, indecisa sobre o que fazer. Ainda tem uma réstia de horas para fingir que não tem filhos, não tem casa e não tem obrigações matrimoniais.

A amiga mora ali perto, poderia lhe fazer uma visita-surpresa, porém recorda que não sabe o novo endereço da amiga. Manda uma mensagem e aguarda resposta, lá se foi o inesperado. Tenta se abrigar da onipotência daquele sol de primavera. Acha bonito as mulheres a desfilar com sombrinhas para se proteger dos raios ultravioletas. E se conseguisse se lembrar de fazer o mesmo… 

Perdida nesse condicional, caminha a esmo até esbarrar numa árvore que oferta cachos de flores tão amarelas quanto aquele específico sol daquela tarde totalmente fora dos padrões para uma quarta-feira na vida de uma mãe.

A amiga manda resposta de voz sonolenta: bloco D, desliga. Nunca dantes percorrera aquela vizinhança. A quadra é desolada, composta de prédios imponentes e jardins bem cuidados. Faz lembrar o início de Brasília, quando tudo era perfeito e insípido. Procura pelas empenas dos edifícios à caça das tais letras do alfabeto. No trajeto, há um grupo de homens trabalhando em reparos estruturais de canos ou de cabos subterrâneos. Eles encaram a mulher de camiseta sem sutiã e saia nos joelhos. Eles salivam. Eles param o que estão fazendo. 

A mulher se incomoda e sabe que não foi a primeira e nem será a última vez que se verá numa situação de fragilidade. No dia anterior, ela já havia passado por outro constrangimento: no elevador, ela e uma mulher mais jovem e mais bonita. Um grupo de homens adentra e se vira de costas para ela, mas não para a moça mais jovem e mais bonita. Todos eles falam boa tarde apenas para o corpo com sex appeal. Homens sabem ser típicos. Tanto faz se estão de terno e gravata no elevador ou de macacão e capacete revolvendo a terra, que é vermelha, bonita e faz um contraste plástico com os capacetes amarelos como o sol que vara a pele da mulher que transita.

Havia uma Ekaterina no bloco D, ostensivo nos elementos arquitetônicos ao gosto da alta burguesia. O porteiro enviou a mulher ao apartamento do primeiro andar. A voz que a mulher ouve do outro lado da porta larga e branca não é a voz da amiga dela. Ekaterina, não, a amiga se chama Catarina, nome que lhe apraz.

Tenta mais uma vez, a última, o encontro que já lhe parece um transtorno. A amiga é confusa, mas a mulher é persistente. Seria bloco P? Desculpe-me, é bloco L, não sei porquê disse bloco D. Brasília alfanumérica, geométrica e lunática. A mulher ri do inusitado da situação, resgata o humor da tarde sob o sol sem sombrinha e sobe ao quinto andar do bloco L, de Luciana, dali pra frente, não se esquecerá. Tem boa memória visual a mulher que se encanta com a amplidão da varanda a avançar sobre o horizonte solar e ainda desimpedido da capital da república. 

Ela se senta de frente para as nuvens e a frase que lera no banheiro do espaço de massagem, uma hora antes, lhe volta ao pensamento: “O amor é a força mais sutil do mundo”. Gandhi disse isso, é? Bacana. Sim, amava a amiga e amava a tarde que esmorecia, quente e maviosa.


Comentários


  1. Adorei... lindo !!!!
    Exatamente assim os homens.
    Eu me descubro assim sempre, como vc ... relegada kkkkkk
    Tenho uma irmã de vinte e poucos anos. Andar com ela é como se eu não existisse .
    Morena, curvada, doce ...
    Eu me sinto até mãe dela kkkkkk
    Os homens não tem educação
    Perfeito seu texto ...

    Catarina França

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  2. Adorei! Adoro esses textos, esses temas cotidianos! Quanta poesia para uma tarde trivial né?
    Queria vc andando pelas bandas do noroeste kkkk

    Ana Cláudia Loyola

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  3. Muito bom, Luciana, esse calor que nos faz ver miragens.

    Davi Antunes Lima

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  4. Amei! Que Português bem escrito!
    E amei essa foto. Havia uma Acácia no jardim da minha casa. Ficou na minha memória como uma flor da minha infância. Obrigada pela recordação e pela emoção.
    Acertou sem meu coração. Continue espalhando o belo. com certeza acertará outros corações.

    Karla Liparizzi

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  5. Bom dia, minha Preciosa!!! Mulher de Deus, que alvo mais certeiro é este, que precisão em prescrutar o coração de uma mulher, e melhor, saber dizê-lo. Uma ressonância magnética de ultima geração esta epigrafe que você escolheu.
    e a crônica... que delicia! Parece que eu fui com você. Parece nada, passeamos juntas, lemos a frase de Gandhi no banheiro e concordamos com Brasília: "alfanumérica, geométrica e lunática."
    Obrigada pelo passeio.
    Eu também me abriguei sob as acácias amarelas. Mimos da primavera para atravessarmos os verões e invernos de nossos dias.
    "Mais do que a elaboração técnica, o que parece ser muito importante para escrever é a capacidade de dosar o que somos e vivemos com aquilo que acaba vindo ao mundo. Escrever é tirar o supérfluo do que escrevemos e deixar só o essencial."
    Você faz isto muito bem, você nos convida a verse/sentir contigo. E é minha autora.

    Karla Melo

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  6. Adorei, descreveu bem os homens. Agora descobrir que você tbm faz massagem ayuvedica é demais.

    Renata Assumpção

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  7. Sensacional!

    Rodrigo Holanda

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