Bicharada Vipassana



Eles já foram o símbolo-mor da resistência nordestina: os jegues, burricos, jumentos. Designações que guardam diferenças entre as espécies, mas não me perguntem quais. Há 20 anos, esses quadrúpedes formavam um exército. Milhares podiam ser avistados em qualquer viagem de carro pela região Nordeste. 

Como se soubesse o que são as fronteiras interestaduais, a horda de jegues permanece restrita e conectada ao estilo de vida sertanejo do semi-árido. Hoje, contudo, não fazem mais diferença para as populações-caatingas. Trocados por motocicletas, verdadeira praga barulhenta e imprudente de toda vila, povoado e rodovia do sertão-mar, os jumentos agora ciganeiam sem ofício e sem dono, o que não deixa de ter alguma poesia. A encenação diária de “Os Saltimbancos”. Aliás, cachorros, gatos e galináceos vão bem, obrigado, nas cidadezinhas nordestinas fora do mapa das badalações.


O quarteto animal imortalizado na dramaturgia convive harmoniosamente com a rotina de vagabundagem, incluindo no bando, os caprinos que ultrapassam, e muito, o contingente de jegues. Em cada beira de estrada, prontos para morrer atropelados, lá estão os endiabrados cabritos. Sem contar as vacas que, vez ou outra, dão sinal de vida ou de morte (os meninos muito se chocaram com uma delas estufada com as patas para cima. Primeira vez que bateram os olhos num cadáver naquela pose inglória). Nonada. 

Simpatizo demais com os burricos. Aquele jeito palermão de ser e de estar. Havia muitos anos que não presenciava matilhas de cães insolentes e agitados. Onde há um ajuntamento de casas nos ocos dos fins de mundo, os cachorros marcam presença. Gatos, em menor quantidade, parecem ser menos rurais. 

As galinhas atravessam a rua, os jegues trotam pelos acostamentos. O interior nordestino lembra um imenso latifúndio prestes a fazer a “revolução dos bichos” dos trópicos. Não seria má ideia que eles se rebelassem contra a poluição sonora e do ar das motocas, sempre estridentes e irresponsáveis. Montado em um burro, no máximo se levava tombo ou coice. Os acidentes fatais ou incapacitantes deveriam ser esparsos (será que existem estatísticas sobre a questão?).


Sobre duas rodas, ao contrário, tragédia. A falta do capacete ou de roupas adequadas, provocam fatalidades abundantes. As mulheres, de forma mais arriscada, geralmente vão sentadas de lado, por causa das saias e vestidos. Aos pés, chinelas, alpercatas. 

No agreste, o que você menos encontra é motocicleta a levar uma ou duas pessoas. São famílias inteiras no lombo da barulhenta. De mamando a caducando, todos apinhados naquele banco exíguo. Até bebê agarrado ao peito eu presenciei. Sem falar nos apetrechos. As motos fazem mudança; transportam ventilador, cesta básica, material de construção e escolar…

Pobres jegues abandonados à própria sorte. Pastam pelas dunas à caça de um sentido para a existência. Talvez gostem de não mais viver para servir à exaustão. Em duplas, trios, quintetos, os burros estão em toda parte sem fazer parte de nenhum lugar. A impressão é de que foram devolvidos à natureza selvagem. Livres das marcações, dos cabrestos, dos chicotes, vagueiam à espera do último suspiro. E ele pode vir de velhice ou da trombada num caminhão. Ou de fome, se a sequidão aperta. 


Mambembes muares, cabras da peste, cão dos infernos, gatos escaldados, garnizés, cocares. Nos grandes sertões, cada qual tem seu espaço e sua tribo, à revelia dos homens. Não esperam recompensas, não pedem licença. Altivos, aproveitam um dia de cada vez, sem chorar pelo passado ou ansiar pelo futuro. Bicharada evoluída, do tipo Vipassana. 


Comentários

  1. Interessante seu ponto de vista e de olhar pra esses pequenos animais que cada vez vão ficando distante de nossas realidade né Lu!

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. ... imagino como destoam da paisagem!

      Excluir
    2. Vixi... Apaguei o comentário anterior sem querer! Kkk falava dessa troca dos burricos pelas motocas... Será que foi so pela rapidez de fazer o percurso, "duram" mais? Menos trabalho?? Conversou com alguém lá sobre isso?

      Excluir
  3. Adorei! Agora, as pessoas correm mais risco no lombo das motocicletas... ótima observação.

    Ana Claudia

    ResponderExcluir
  4. Muito bom o texto, mas entre o jumento e a moto teve a bicicleta. Os jumentos foram abandonados pelos donos e, em Luís Correia, a prefeitura, na 'temporada', aprisionava-os no terreno vizinho da minha casa, era muito triste.

    Paula Mello

    ResponderExcluir
  5. “Bicharada evoluída tipo vipassana” adorei!!!

    Cynthia

    ResponderExcluir
  6. "mambembes muares"
    Gostei!
    Foram muito importantes no início do século passado. Agora realmente ninguém quer saber... Aconteceu a mesma coisa nos EUA nas regiões de Minas (Arizona), os jegues vagam livremente sem interesse de ninguém!

    Rodrigo Assunção

    ResponderExcluir
  7. Adorei, Luciana! José e Maria também viajaram bastante pelo oriente no lombo de um burrico. Esses bichinhos tão simpáticos já tiveram papel mais nobre em todo lugar.

    Davi Antunes

    ResponderExcluir
  8. Texto à altura do belo título, Luciana!

    Lunde

    ResponderExcluir
  9. Muito bom e verdadeiro!

    Cecília Pereira

    ResponderExcluir
  10. Uau, estava com saudades de ler seus textos, que maravilha de narrativa! Adoro me enriquecer com suas lentes, com sua mente. Obrigada, Lu e faça um diário escrito dessa aventura"

    Renata Assumpção

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos