Aldeia Global







“Antes mundo era pequeno
porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande
porque Terra é pequena 
do tamanho da antena parabolicamará” 

(Gilberto Gil) 



É um cubículo simplório, porém digno, o “Espaço da Lu”. Cheguei à porta e me fiz de enturmada: ‘Também sou Lu”. Mais tarde, soube que ela era Lu, de Lucivan. 

Marquei a manicure para às quatro da tarde. O dia estava besta além da conta, feio para se demorar na praia: nublado e ameaçador. Nuvens negras vinham a galope no vento intenso de Barra Grande/PI. 

Resolvi prestigiar a prestação de serviços locais e a xará de apelido. Curtir um programa Luluzinha que precisa de pausas sistemáticas do universo testosterônico a lhe rodear. 

Lucivan me recebeu com pontualidade, apontando uma maca alta na qual eu deveria me sentar. Ela se quedou literalmente aos meus pés. Nunca havia feito pedicure assim, sentada num trono, como se fosse engraxar sapatos. 

De certa forma, era o que a Lu proporcionava: um resfolego gostoso, massagem leve e hábil a engraxar meus dedinhos sedentos de cuidados. Aquela prática era inédita para mim, provavelmente a marca registrada dela. Todo mestre em seu ofício detém algum segredo que só se revela no fazer. 

Na medida que ela avançava, eu me embrenhava em reminiscências, admirando as vacas pastarem quadradas pelo vão gradeado do quarto transformado em salão de beleza. 

A janelinha quadriculada era uma tela recortada da sociedade barra-grandense. Aliás, da nossa ‘aldeia global’, profetizada pelo filósofo Herbert Marshall McLuhan: as novas tecnologias tendem a encurtar distâncias, reduzindo todo o planeta às experiências existentes em pequenas comunidades, microcosmos interligados. “Se você quiser, aqui tem WiFi”, informou a proprietária. 

Queria não. Tenho prazer voyeurista em observar pessoas talentosas trabalhando. Sem falar que aquele retângulo aberto para o exterior, na mira da minha alma contempladora, era tentador. 

Passou turista, passaram crianças. Avistei uma das moças que trabalha na pousada na qual me hospedei saindo de mais uma jornada. 

Cruzou um cachorrão na coleira com jeito de feroz, contido por seu dono bombadão. Segundos depois, já fora do meu campo de visão, o tal cão se provou realmente agressivo pelo latir potente e insistente que ouvi. 

Em seguida, um casal gay desfilou abraçado. Do canto da janelinha, testemunhei uma troca de selinhos. 

Um bebê no carrinho era arrastado com esforço na rua de areia pela mãe, que vai ganhar muito tônus muscular até ele começar a andar. Uma cabeleira branca esvoaçante deu o ar da graça; homens de sunga, mulheres em saídas de praia. 

As vacas ruminavam no terreno baldio, uma delas a se divertir com a caixa de papelão abandonada. Lucivan, que de início se mostrou fechada, aos poucos cedeu à curiosidade da cliente questionadora. 

Morara em Teresina e Fortaleza, onde “cuidava de crianças”, porém decidira voltar para sua vila-natal. Ali, montou o espaço na casa da mãe. O namorado trabalha na pizzaria Rota dos Ventos, no turno da noite. “O nosso amor é tão bom, o horário é que nunca combina"...

Na parede do quartinho repleto de esmaltes coloridos, há também uma imensa coruja pintada à mão pela própria manicure. Técnica, percebe-se logo que ela tem. Poucas vezes meus pés e mãos foram tão bem zelados. 

Alguns parentes de Lucivan moram em Brasília e não se cansam de insistir para que ela ganhe dinheiro na capital da república. Mas ela garante: “não tenho vontade de ir”. Se viesse, certamente se tornaria uma podóloga disputada pelos salões metidos e antipáticos das entrequadras ou, pior, dos Lagos Sul e Norte. 

Entretanto, acho que ela age muito bem em permanecer. Mais doce e pleno ver a vida passar quadriculada em Barra Grande, conectada às redes sociais e comandando um império, do que ser soldado raso em qualquer periferia violenta e estressada das metrópoles. 

Comentários

  1. Lu, eu não entendo porque você ainda não escreveu um livro! Quanta sensibilidade! Seus textos sabem encontrar elegância na simplicidade! Tudo na sua escrita vira arte! Parabéns! Bjs.

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  2. Conte mais sobre o Piauí, estou curiosa pra ler e saber dos detalhes das aventuras... Beijos da Marcita

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  3. Delicia de leitura matutina, feliz pela partilha de momentos tão únicos, agora ‘olhamos’ daqui um bocadinho��

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  4. Que lindo!

    Leila Brandão

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