Estamparia curativa







Estou sentindo falta da Poli, Poliana, minha gentil e super profissional manicure e podóloga. Uma menina que batalha, que tem sonhos e voa. Agora mesmo, está experimentando uma vida irlandesa. Foi aprender inglês e espiar o velho mundo. Não sei se volta pra cá, um mundinho geologicamente novo, mas ideologicamente arcaico. Vou entender se ela quiser se sentir cidadã todos os dias. Sem medo de assalto, sem engarrafamentos exasperantes, sem falta de civilidade. Uma boa manicure na Europa é um tesouro disputado! Habilidade valorizada.

A ausência de Poli perto de casa me fez rebolar. Conheci Stefane, a manicure que trabalha no subsolo do Tribunal. Ela também me parece uma menina bacana, com ideias muito próprias, mas com uma certa sombra no olhar que reconheci imediatamente. Semana passada descobri que ela fora atropelada na infância enquanto aguardava educadamente na calçada para atravessar a rua (a selvageria do Brasil da miséria humana).

Passou meses, quase um ano, no hospital, lutando para sobreviver. Restou a cicatriz que diz ser horrorosa e imensa em uma das pernas, além, é claro, da cicatriz na alma, a que provoca a tal sombra bem específica. Só quem sofre pesado em tenra idade apresenta e compartilha com outras almas-parceiras numa espécie de telepatia.

Me expôs sua dor porque viu minhas tatuagens. Revelou a vontade de fazer um grande leão para esconder as marcas da violência sofrida na idade dos desejos de mostrar as pernas sem que as pessoas virassem o rosto de repulsa ou perguntassem com insistência mórbida: o que aconteceu com você?

Dei o maior apoio, evidentemente. E me lembrei de Frida Kahlo. Ela não sabia quem era, evidentemente. Mas prometi lhe enviar biografia e obra da artista, que, lhe contei, também foi vítima de um sofrimento dilacerante transformado vitoriosamente em paixão por cores e formas.

Stefane ainda não consegue ser colorida, infelizmente. Hoje, olhando minha saia estampada à exaustão, disse que tem um guarda-roupa monocromático. Preto, cinza, “adoro azul-escuro”... O mais perto da luminosidade que se permite é o rosa, além de umas estampas mínimas, quase microscópicas, explicou.

- Outro dia eu me apaixonei por um vestido, pelo modelo do vestido, sabe? A vendedora insistiu pra eu experimentar, mas quando abri, tinha um tucano imenso bem na bunda! Onde é que já se viu um tucano daquele tamanho na bunda? Brasileiro é feliz mesmo!!! Imagina se eu vou usar um bicho daquele tamanho na minha bunda?

Adorei a constatação filosófica que exprimiu sem saber. Ri gostoso. Brasileiro é feliz mesmo porque é capaz de usar estampas imensas e lindas nesse país imenso e cruel. Eu uso. Não sei se sou feliz, mas uso. Não de tucano na bunda ou de outros bichos. Se bem que tenho uma camisa de botão com corujinhas. E outra nova com um leão (sempre ele), que ainda não encontrei jeito de usar. Gosto mais de flores, geométricos, abstratos e bolinhas. Ah, as bolinhas.

O que será que ela vai ter a me dizer sobre a Frida? Aguardarei ansiosa por nosso próximo encontro no porão.


Comentários

  1. Obrigada pelo texto! Aguardo ansiosa tbm.

    Sinara

    ResponderExcluir
  2. É isso. A imprevisibilidade da vida apresenta chances de agregarmos a experiência do outro.
    É assim vc escreveu o que poderia ser mais do que um texto: um belo diálogo e história de vida.

    Socorro Melo

    ResponderExcluir
  3. Conheço a Stephane. Gente boa!

    Fátima

    ResponderExcluir
  4. Luciana, Lulupisces ...
    Adorei o texto. Sempre emocionante! Arte!

    Karla

    ResponderExcluir
  5. Tb ansiosa pra saber o que vai achar das cores de Frida Khalo...

    Cynthia Chaybb

    ResponderExcluir
  6. Suas estórias me fazem sorrir, aquele sorriso que vem lá do fundo... Bom para começar um domingo. Excelente dia para você, Lu!

    Patrícia Dellany

    ResponderExcluir
  7. Amo nossa conexão de alma. Sorri no coração com sua capacidade de transformar cotidiano em algo FENOMENAL. Me senti parte da Irlanda, com saudade de sua manicure. A gente precisa de mais gente tão simples, tão simples que não podemos viver sem elas.

    Davi

    ResponderExcluir
  8. Ahhh, vc e suas histórias lindas! Fiquei até com vontade de ir "fazer minhas unhas" e conhecer a personagem!

    Cláudia Valadares

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos