Em defesa da lebre




Destruída, devastada, desmontada, debulhada, demolida. O ano começa enquanto terminamos um ciclo intenso de aprendizados, memórias e bagagens: centenas de tralhas em várias dimensões, cores e tamanhos. 

Duas casas em 1 ano e meio. Hemisfério Norte e Hemisfério Sul chacoalhando nos dois lados do cérebro. Sinapses em desintegração. Devo estar perdendo bilhões de neurônios para o cansaço em três, dois, um! 

Impossível não pensar nas pessoas que habitam casas desorganizadas, atulhadas, desesperadas. Roupas e objetos confusos pelos cantos ou escondidos em gavetas e armários abarrotados. Tem gente que vive assim de boa, não precisa ser um acumulador, apenas um bagunçador crônico. 

Mamãe era um deles. E talvez por ter dividido quarto com ela por tantos anos, influência de minha madrinha - espartana e estoica em todos os sentidos – ou por algum gene herdado das minhas tias maternas (portadoras de TOC por limpeza em graus variados), não suporto conviver com pendências. Sou o contrário da procrastinação. Avessa ao adiamento. Vapt-vupt me define. Detesto a fábula da "Lebre e a Tartaruga". Pronto, falei!

Desde menina sou ciosa dos meus compromissos. Viciada em agendas de papel (até hoje, compro uma a cada janeiro), tomo nota da vida. À mão, todos os telefones importantes, consultas e datas de aniversário que sei de cor. 

Enquanto isso, minha irmã mais velha me pede pela décima-quinta vez o número daquele médico... E também a lista de aniversariantes da família (perdi a conta de quantas já lhe repassei). Nunca consegui entender esse tipo de coisa, gente! Será que sou neurótica e os outros é que são normais na desordem? Eu dou pinta de psicótica? Falem a verdade! 

Acho que uma das características que mais me identifica com as profissões de jornalista e publicitária é o famigerado deadline. Prazos fixos (geralmente curtos) para concluir um projeto, uma ideia. A maioria teme ou sofre com a pressão. Eu adoro, pois a lógica é a seguinte: o quanto antes eu me livrar de uma obrigação, mais tempo terei para não fazer nada, meu passatempo predileto. 

Fechar ciclos e abrir outros é a cara da “menina versátil” (apelido dado pela amiga de infância Lara quando tínhamos 14 anos). Não gosto de lenga-lenga; de reuniões sem fim; de democracia ad eternum. Deriva dessa postura autoritária, o apreço por novidades, surpresas e quebra de paradigmas para minimizar a rotina soporífera da existência; além de uma vontade danada de dar ordens que sejam executadas em tempo recorde. 

Quando me lembro das experiências de trabalho na área de gestão de pessoas... Torturantes aqueles debates sobre todos os temas... Psicólogos e Pedagogos excessivamente compreensivos e abertos ao diálogo interminável... Affeee, que chatice! Mais começo, meio e fim, por favor! 

Não raro os próprios colegas jornalistas se surpreendem com a rapidez com que dou cabo das matérias. Sempre foi assim. Na escola primária, terminava as tarefinhas de sala muito antes de todos os outros alunos e, claro, começava a perturbar a harmonia da classe. Era a eterna reclamação das professoras. Na terceira série, a tia teve a brilhante iniciativa de me colocar como ajudante dela. Pronto: problema de ociosidade resolvido. Distribuía provas, recolhia cadernos, apagava o quadro-negro, entregava os trabalhinhos mimeografados... 

Foi nessa época que outra tia, a de Artes, me chamou para ser a Emília de Monteiro Lobato numa celebração pelo Dia Nacional do Livro. Ela me disse que eu era a perfeita tradução da boneca elétrica e espevitada. Posso imaginar porquê. 

É por essa e outras que sofro imensuravelmente no ambiente excessivamente burocrático da Administração Pública. As metas e objetivos a perder de vista, lá longe, onde Judas teve de amputar o dedão. A leseira recorrente. Que aflição! 

Assim como é aflitivo ver minha casa com jeitão de perdida. Logo eu, uma adepta do desapego, criticada pelo marido e pelos filhos “por sair dando tudo quanto é coisa sem perguntar antes”, agora tenho dois sofás; duas mesas; uma dúzia de cadeiras extras; colchões e camas quadruplicadas; roupas de inverno rigoroso num país tropical... 

Sei que é uma situação transitória, sei. Em breve já estará tudo nos conformes, estará. O Carnaval taí! Quatro, cinco dias para retornar ao padrão-Luciana de organização dos espaços (resistir aos blocos que passam em frente ao meu bloco é preciso). 

Dar tempo ao tempo é evolução espiritual sem precedentes para os seres que não têm alma de quelônio. 


Comentários

  1. Meu lema é: só acaba quando termina! Chego de viagem e enquanto a mala não estiver guardada no maleiro com cada coisa em seu devido lugar, não posso tomar aquele banho e me esparramar no sofá.

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  2. Ah hoje a aula foi pra vc sem dúvida... não se preocupe suas sinapses, suas redes neurais foram restabelecidas,revitalizadas no kriya da Vitalidade, e com o kirtam Kriya
    SA TA NA MA.Pensei que eu era uma Et,pois todo ano renovo minha agenda,onde tenho todos aniversário s da familia...dou bom dia escrevo o mantra do ano, finalizo o dia escrevendo, gratidão infinita,isso há anos desde sempre...bjs parabéns pelo texto

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  3. Maravilhoso texto como sempre!!!! Todavia, sou obrigada a reconhecer que faço parte não dos bagunceiros de plantão mas daqueles que não conseguem organizar e acabar com a bagunça! Peço ajuda para o meu marido!!!!!! Kkkkkk
    Ah! E a leseira da Adm. Pública também me mata!!!! Estou sempre com agenda riscando obsessivamente os compromissos concluídos! Correndo sempre!!!!!

    Gabriella Santana

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  4. Ai, que texto genial!!!! Sou uma procrastinadora incorrigível e sofro MUITO com isso... Muitos acham que é preguiça, indolência, mas é uma relação muito dolorosa e confusa com o tempo. Agenda de papel para anotar a vida, que lindo isso!Bom sinal, então, que voltei a comprar uma para 2018. Vai que é um ano de mudança ???
    Beijo
    Vit AC

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