Valei-me, Nilse!





A louca dos patos está lá. Não, ela não é louca e nem os patos são patos, mas gansos canadenses. As imprecisões de sempre, os rótulos. A fuga confortável. Mas me incomoda ela ocupar a parte potável do espelho d´água com suas visitas diárias. Ela leva uma cadeira e um laptop. Ela conversa com os bandos e, a despeito de uma placa pedindo que as aves não sejam alimentadas, ela lhes dá de comer, a mulher desgrenhada, Dian Fossey dos plumados. Desse modo, tenho de escalar umas pedras pontiagudas com Frida para que ela possa refrescar a garganta com a água do lago.

A caminhada é puxada para as perninhas curtas da corgi, mas se não fosse Frida, talvez nem sequer caminhasse, sucumbida pela melancolia do subúrbio. A ressaca pós o excesso auditivo, olfativo, visual e tátil de Manhattan deriva numa inércia que beira o intransponível. Mas Frida me olha com olhos de súplica pela brincadeira e saio da autocomiseração para o mundo lá fora, que ainda está bonito, não muito quente anymore, que bom! E no caminho que margeia o Bronx River, que deve ter sido um majestoso rio num passado distante, porém hoje é só um córrego com pinta de poluído, mas bem disfarçado pelas matas ciliares lindas, vou cruzando com os seres estranhos produzidos pela sociedade americana, pródiga em criar personagens solitários, excêntricos, obesos, assassinos.

Outro dia, um desses estava ao longe bem no meio da trilha. Um capuz cobria seu rosto, ele se balançava de um lado para o outro exatamente no local onde eu deveria passar em breve. A imaginação fomentada por anos de filmes policiais e de terror americanos me dizia que ali estava o psicopata esperando uma vítima desprevenida, no caso, eu e Frida que, creio, não é do tipo de cachorro que vai defender a sua dona com unhas e dentes. 

Alguns metros atrás de mim vinham o que julguei ser uma futura avó ao lado da filha grávida. Hesitei rumar ao inevitável encontro com o homem de capuz e de moleton largos, mas elas, não. Seguiam animadas na passada e eu disse a mim mesma que deveria ser coisa da minha cabeça. Era, evidentemente. Me aproximei do cara e conclui ser apenas mais um doido desses comuns por aqui, esperando alguma coisa ou nada, no meio do caminho. Nos EUA, é recomendável rever seus preconceitos. Eles gritam na sua cara a cada minuto e a toda hora você precisa repensá-los. 

Se você se lança à rua, inevitavelmente cruzará com figuras a lhe provocar desconforto imediato. E não por serem moradores de rua, viciados em crack ou mendigos, como no Brasil. Apenas por serem esquisitões que se sentem à vontade em ser esquisitões.

O casal que ontem pedia dinheiro na pracinha das fontes de White Plains (cena que nunca tinha visto antes por aqui), hoje estava sentado comendo junk food à beira da trilha. Ontem, uma mulher correndo pelas calçadas de Manhattan gritou que ela corria ali e que a gente deveria sair do caminho dela. Quase falei fuck yourself, sua crazy bitch! Ela assustou os meninos que vinham tranquilamente subindo a ladeira. Mas os americanos são assim: eles acham que todo mundo tem de aguentar a piração de cada um.

Já experimentou fazer compras de supermercado aqui nos EUA? De cinco em cinco segundos você é importunada com um excuse-me, com um sorry, com alguém que simplesmente não pode mover o carrinho dela ou tocar no seu carrinho para empurrá-lo um pouquinho para lá. A pessoa se acha no direito de passar bem no meio e ela vai exigir isso de você. Então você não fica em paz para apreciar as gôndolas, pois têm de estar de olho se o seu carrinho não está atrapalhando o trajeto de todos os reis da privacidade.

Saio das compras com vontade de descarregar uma metralhadora de impropérios: povo louco, louco, louco!!!! Então fica fácil entender porque alguns cidadãos sentem a mesma gana e descarregam suas semiautomáticas nas cabeças das pessoas. É uma sociedade com altíssimo nível de repressão moral e social. Sufoca.

No clube dos abonados brancos de Westchester, um calor daqueles e todo mundo vestido. Ninguém passa de biquini ou maiô para lá ou para cá. Só tiram as roupas para cair na piscina e depois colocam novamente. Nem as adolescentes. O corpo é um tabu. Depois falam da opressão da burka. Não vejo muita diferença entra as mulheres inorgásmicas de camisetas largas e o burkini.

No parque dos cachorros (aqui você só pode soltar seu cachorro da coleira em parques específicos para isso) um new yorker reclamava exatamente do excesso de regras até para se ter um cachorro nos EUA. "Gente que não tem o que fazer". Concordei. 

Será que é o preço a se pagar por um pouco de civilidade? Esse big brothernismo, um Estado que defeca regras e mais regras para que a comunidade se comporte com um mínimo de razoabilidade? O excesso de cuidados, de under vigilance trazem o conforto necessário ou parece mais uma ilusão de controle que escorre pelos dedos quando se nota as altíssimas taxas de assassinatos e de suicídios para um país de primeiro mundo?

Sei lá, não sou socióloga, porém fiz os mesmos questionamentos a um amigo do Bernardo, filósofo e físico, ou seja, alguém anos-luz mais esperto do que eu. Sua resposta foi que eu não me desesperasse porque alguns países da Europa conseguiram um meio-termo mais razoável entre deveres e direitos do que os EUA. Alívio.

Viver cerceada por regras estúpidas me deixa louca como a louca dos patos. Valei-me, Nilse da Silveira!


Comentários

  1. Adorei!!!!!!! Pergunto-me as mesmas coisas! E mais! Até onde é legítima a liberdade do discurso do ódio americano???? Isso, na minha opinião, fomenta a violência! Uma liberdade sem limites fruto da colonização !

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  2. Adoro seus textos porque me sinto mais perto de você, é como se eu tivesse conversando com você, te vendo falar. Saudades, Lu! Espero que dessa vez eu consiga ir te ver. Pra quando está programada sua volta?

    Beijão,

    Ceci

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  3. ....E viva o Brasil, com sua desorganização social e nossos excessos de liberdade!

    Severino

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