Experimento





O tédio pode ser fonte criadora. Literalmente de papo pro ar, me deparo pela primeira vez com o texto, digo, o teto branco e suas rachaduras. O fluorescente das longas lâmpadas espirra sua cegueira, mas me recuso a atender aos apelos dele. E aí experimento digitar olhando para o texto, digo, teto. O supremo teste das aulas de datilografia: digitar com os dez dedos sem olhar para o teclado. É divertido, é anti-Alzheimer. Daqui a pouco eu olho pra saber o quanto deu certo. Tem um buraco no texto (ato falho de novo), um buraco no teto! Um vão, uma calha pra dentro. Será que vai chover em mim ou vão cair folhas secas? Nessa época do ano em Brasília só folha seca mesmo. Volto a olhar para a tela e há uma dúzia de grifos vermelhos. Passei no teste! Alzheimer belamente digitada sem um errinho sequer olhando para o teto! Concluo que digito bem em qualquer posição. Se bem que ainda não testei usar o teclado e o kamasutra simultaneamente. Ainda dá tempo! Afinal, ralo no Pilates para quê? Faço as devidas correções e deito a cabeça rumo ao teto novamente. No ouvido, o Rita Lee acústico, uma nova paixão sonora. Porque o velho se reinventa quando é dedilhado por gênios. Estou sozinha na sala grande de teto branco com sprinklers. Hum... E se eu posicionasse um isqueiro pertinho dele e ... As rachaduras são estradas, caminhos para longe daqui. Viajo... Agora o silencio. Só o barulho das teclas apertadas. Música familiar para os ouvidos do escritor diletante. Retorno a cabeça para a posição vertical e me dou conta de que acentos gráficos não combinam com a digitação de cara para o teto: errei todos! Mudo de trilha sonora. Pego pesado com Muse a fim de provocar a minha musa: embote ou aflore de uma vez, porra! Escrever palavrão é uma saída pobre, garota. Esqueça. A colega ao lado retorna do almoço e eu já explorei toda a terra polar do teto que ameaça cair sobre mim. Estou quase derretendo na cadeira. Nenhuma aula de pilates vai consertar o que faço com a minha coluna nesse exato momento. Ainda digito sem saber o que estou digitando como se atingida pela cegueira fluorescente de Saramago. Eu e minhas “citações eruditas” como diria meu primo-irmão (aspas também não combinam com texto do teto). Muse me deixa muito alucinada e eu digito, digito, digito, rápido, rápido, rápido para seguir a guitarra junto com a bateria. Quero sacudir a cabeça para ver meu cérebro pousar no colo. Tô quase morrendo de rir da minha piada nessa situação patética, porém engraçada. Todo pateta tem um quê de palhaço e vice-versa. Salutar gargalhar de si próprio, ponto final.



Comentários

  1. Muito bom.Adorei!

    Maria Cruz

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  2. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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  3. Maluco!!

    Beleza!!

    Beijo,
    Paulo.

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  4. Lindo, Lu vamos fazer mais testes, beijos....

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  5. "Porque o velho se reinventa quando é dedilhado por gênios."

    Amei isso... Parabéns!

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  6. Abri o livro na p.81 e dei de cara com um novo 'Experimento'
    Beleza de texto!
    Sou ótima no teclado com apenas dois dedos (indicador direito e esquerdo) e os polegares resolvem o espaço.
    Exímia datilografia
    dos velhos tempos da Olivetti e Remington. Depois vejo a IBM elétrica (esfera rotativa); continuei com a mesma tática e velocidade.
    É simplesmente um deslumbre ler os seus textos. A linha que liga sua imaginação à folha em branco é tênue e precisa:
    Nada se perde e tudo se torna encantamento. Vc me inspira!
    Um beijo outonal.

    Jandira

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