Vasta gratidão





Viajar de carro como navegadora de araque é a oportunidade ideal para a germinação de textos maravilhosos. Isso se o caderninho de anotações estivesse à mão e não guardado na mala lá atrás. As paisagens brasileiras se sucedendo entre pastos e plantações. Tantas árvores fotografáveis com seus dramas pedindo clemência ao céu. 

Gostaria de ter tempo ilimitado para parar a cada frame e registrar tudo o que meus olhos viram e que, você, que não viaja de carro, jamais verá. Seria a minha contribuição de beleza para a evolução da humanidade. 

O fato é que viajar de carro ficou demodê. Um contrassenso se analisarmos que os automóveis hoje são muito mais confortáveis e velozes para singrar o continente Brasil do que eram na nossa infância sem cinto de segurança, sem air bag, GPS, Waze, freios ABS... Até as rodovias são melhores, acreditem. Boa parte duplicada, pedagiada e segura (a tarifa salgada de algumas delas tem de trazer benefícios, certo?). 

Mas as famílias não viajam mais de carro, fenômeno contemporâneo. Acho que o imediatismo da sociedade atual não comporta um deslocar-se em slow motion. Porque a janela do carro é a tela de cinema a exibir um filme de cinco, seis, oito horas de duração. As pessoas querem um desfrute instantâneo da vida. E o avião, com preços menos ostensivos, oferece a sensação de que você não está perdendo tempo. 

Só que viajar de carro jamais pode ser encarado como desperdício de férias, muito pelo contrário: é a essência do ócio criativo, pois o caminho significa descanso, alegria e aprendizado. Porém desconfio que apenas as pessoas com uma ligação fecunda com a terra apreciem a modalidade. Se você não for conectado com o chão, com o Brasil profundo, tudo não passará de uma monótona variação de verdes e marrons. 



Tive esse insight mirando os pequenos casebres de algumas fazendas ao longo do trajeto. Taperas ao pôr-do-sol. Se você não aprendeu a amar o “traste em flor”, como diria o matuto Manoel de Barros, por que irá se comover com uma cena dessas? Viajar de carro é se reconectar com o barro. Mas só quem já foi conectado à poeira vermelha pode valorizar a religação. 

As pessoas hoje são urbanas demais. Poucas tiveram experiência de mato, cocô de vaca, cheiro de curral e ausência de luz elétrica no período fundamental para consolidação dessa personalidade afetiva pela terra: a meninice. Não é uma crítica, é somente uma constatação. 

Na verdade, uma atitude menos egocêntrica da minha parte: procurar entender quem simplesmente não curte esses lances. Coisa que eu achava totalmente absurda até esta última viagem, voltando por uma das regiões mais bonitas do país: noroeste de São Paulo, sul de Minas e Goiás (Prata, Frutal, Itumbiara). 

Dá gosto de ver aquele mundão de terra fértil. Reconfortante sentimento de que o Brasil dá certo entre cafés, bois, abacaxis, laranjas, milho e soja. Revi caminhões de gado lotados, algo tão comum na minha garotice. A fila de vacas se encaminhando para lamber sal grosso no coxo. A dor da saudade ardeu meus olhos. Talvez meus filhos nunca compreendam esse amor. Para eles, a viagem de carro e o prazer da roça estão sendo ensinados. Não é natural como foi para mim desde sempre. 

A reverência às imagens rurais é uma catequese. Espero que um dia sintam gratidão por este implante de lembranças doces e agrestes. A exata gratidão que tenho por meus pais ao me legarem a vastidão de morros, cachoeiras e galopes.


Comentários

  1. Lindo texto, LÚ!!!
    Mesmo aqui em Barretos, com a vida que temos, meus meninos são bem mais urbanos q rurais. Não é fácil concorrer com a as maravilhas da internet....mas não desisto....rsrsrs

    Marina Caldana

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  2. Verdade, Lu. A Juliana chegou deslumbrada com as paisagem. Ela e Caetano viajaram de carro, um Honda 2013, carrão...

    Bjs,

    Leila

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  3. Você acredita que eu disse isso hoje ao Geraldo??!!! Bom, sou suspeita, porque não gosto de avião e sempre curti andar de carro. Minha mãe diz que, desde muito pequena, eu sentava de ladinho à janela, contemplando, quieta e devota, a paisagem. De que outra forma nos perderíamos em Iguape e conheceríamos aquele centrinho lindo, ou ainda, veríamos em Mongaguá o "Motel Kibutz" e a "Imobiliária Barack Obama"??????

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  4. Bom-dia, Lu!
    Que este ano que começa seja maravilhoso como viajar de carro!
    Eu não tenho raízes na fazenda, mas como só viajei de avião a primeira vez com 19 anos minha vida sempre foi andar por este país com 4 rodas...

    Carmem Cecília

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  5. Ah Lu que me inspira! você me faz o coração palpitar de tanta poesia. Me fez enxergar cada paisagem, quase a sentir o cheiro delas. Que este ano seja mais saboroso e divino para você. Love u always

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