À procura da isenção





Devia ser mais fácil para os pais de antigamente. Era só por filho no mundo, numa repetição histórica dos comportamentos esperados de homens e mulheres que vivem sob o mesmo teto e copulam com regularidade. 

Eram filhos anuais, sem dores de consciência. Talvez apenas o tédio e o cansaço da mãe parideira que morria um pouco mais a cada parto. E o orgulho a mais do pai macho que emprenhava sua mulher sem piedade. Não havia preocupações extras a não ser educar pela vara, saciar a fome, repassar os bons modos e as velhas teorias e preconceitos. 

OK, não queria ter nascido mulher nesta sociedade. Hoje, ao menos, os machismos excessivos são vistos com maus olhos e somos livres (?) para escolher quantos filhos ter, inclusive não ter nenhum. Não sem a condenação velada ou explícita de quem ainda respira as milenares engrenagens das regras pré-estabelecidas. 

Mas também não queria ter todo esse discernimento acerca do poder de mãe para destruir o coração dos filhos. Furiosamente posso despejar minha bagagem mental pesada, um baú de agruras em suas mentes límpidas. Assim, os deixarei atormentados pelo restante de suas buscas pela Terra. Haja terapia para tanto filho quebrado por aí. Mãe e pai: categoria responsável por 90% das neuroses revividas de geração em geração. 

Agora a gente lê e estuda teorias demais. Quer ser o melhor pai e mãe do mundo, quer tudo do bom e do bem para os pimpolhos. A gente se rasga, se desdobra, se culpa. Culpa: modalidade mega contemporânea de doença psicossocial materna... Tanto é que assisto a um filme chamado “Incêndios” e tenho vontade de voar no pescoço da personagem que arrasta seus gêmeos para um oceano de dor e veracidades abjetas. 

Em dado momento do filme, outro personagem alerta: “nem todas as verdades devem ser conhecidas”. Concordo com ele. Que direito eu tenho, por ser mãe, por ter sofrido sei lá quantas atrocidades, de enfiar goela abaixo dos meus filhos as minhas amarguras? Eles são outras histórias. Deveriam escrever suas próprias narrativas com o mínimo de interferência dos meus traumas. 

O filme me deixou com essa revolta contra mães autoritárias, mães cobradoras disfarçadas de mães sensíveis que precisam contar a realidade por trás das coisas. Fiquei puta com aquela mulher. Ela não tinha o direito de ser uma mãe completamente surtada em vida e afogar os filhos naquele esgoto depois de morta. Ninguém ganhou nada com aquilo. Não foi edificante. Desconfio de qualquer espécie de redenção se tivesse acontecido na vida real. 

Na real, os gêmeos ficariam danificados (ainda mais) para lidar com os relacionamentos que por ventura construíssem. O incêndio revelador dizimaria qualquer possibilidade de felicidade. Pareceu, a mim, uma vingança torpe contra quem não tinha nada a ver com aquilo. “Vocês pensam que a vida é essa moleza, eu vou mostrar pra vocês o que é a vida afinal”. Cruel isso. Cruel qualquer mãe acreditar que desmoronar a paz de espírito dos filhos está incluído no pacote de chancelas maternais. 

Eu digo não a essas maluquices. Sei que não sou perfeita. Sei que meus filhos convivem com o melhor e o pior de mim todos os dias. Mas estou nessa procura pela isenção. Não quero transmitir para eles meus ódios, minhas rejeições, minhas paranoias. Meus filhos nem sabem que tenho nojo de certas comidas que eles adoram. Tento não imprimir meus paladares e sabores a quem é plenamente capaz de descobrir sozinho o que lhe apetece ou não.

Não ficarão sem cicatrizes, é fato, pois nas relações mais densas e delicadas, elas são inevitáveis. Porém, que não passem daquele arranhão que marcou superficialmente a pele, ao roçar o braço na planta espinhosa do jardim.



Comentários

  1. Eu vi esse filme... terrível mesmo. Tb não sei que bem aquilo tudo trouxe aos que vivos continuaram. Ela se foi, que tivesse levado pra debaixo da terra a barra pesada que soube esconder em vida. beijin

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  2. Ixi, nossa conexão telúrica deu um curto!
    Eu adorei Incêndios, assisti 2x!!!!! E juro que não sou uma mãe sentada sobre as chancelas da maternidade!!!!!
    Eu fiquei tão, tão atordoada com aquele enredo (Janete Clair rsrsrs) - a parte na Síria ou Líbano, não lembro, é McGiver mesmo...- que o filme não me saiu da cabeça por dias... Na verdade, não vi a mãe em momento algum, vi a mulher, e achei a sua dor bastante convincente. Agora, depois de ler sobre o legado-cruz que ela deixa para os filhos, levei um susto. É fato, por que deixar de "bônus" uma verdade tão excruciante para os filhos???? Sei lá, talvezo sofrimento lacrado a 7 chaves não tenha permitido que ela enxergasse o que estaria fazendo para os gêmeos depois da leitura daquelas cartas...
    De todo modo, interessante como a mesma obra pode provocar olhares tãããão distintos. É a beleza do simbólico!
    Beijos,
    AC

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  3. É... minha amiga Luciana... estou aqui a pensar: Filhos.

    Outro dia estava me lembrando de um tio, Heitor, irmão mais velho do meu pai, lá de Caldas.
    E fiquei meio chocado ao me conscientizar, contando nos dedos, do tanto de filhos que ele, e a tia Dina tiveram:
    Zezé, Tino, Sueli, Alda, Toca e Bito. Seis!
    E penso eu aqui comigo: coitada da tia Dina!!

    E, com a gente, a Eliane teve três, e já parece bastante!!
    Tá certo que no caso dela foram dois casamentos.

    Mas também já te alerto. Os filhos criam asas e se vão. É a vida...
    Matheus e Felipe estiveram em casa esse fim-de-semana (o que não acontecia ha bastante tempo), e se percebe que estão próximos de cuidarem sozinhos de suas vidas.
    Já se formam neste ano. E já estão fazendo os seus estágios e ganhando algum dinheiro.
    E logo-logo estaremos apenas como um apoio distante.
    A Eliane sente um pouco isso. Talvez falte da parte deles, um pouco mais de atenção com ela.

    Já te falei: sempre me lembro daquela parte do Profeta, que fala dos filhos.
    Eles apenas vêm através de nós. Mas não nos pertencem.

    Com a Ana Olivia, eu só me preocupo, porque já vou estar com menos disposição quando ela chegar naquela fase da vida.
    E por isso a gente já vai se preparando - e a preparando - para que ela seja mais independente.

    E, claro, penso na minha própria mamãe. Com quem, sempre acreditei, ter sido atencioso. Será?
    Sempre ligava pra ela (toda semana). Num tempo em que a gente tinha que sair da república, e ir lá do outro lado da avenida, pra ligar de um orelhão. Com fichas!! Anos 80!! A gente não tinha telefone. Outros tempos...

    Com relação à sua primeira frase abaixo, acho que tem muito a ver coma a Eliane também.
    Mas, com relação à minha mãe (outros tempos...) foi muito diferente. Ela sempre me respeitou muito.
    Ela era muito carinhosa, mas também não se matava por mim não.
    Ela sempre me deixou fazer as minhas escolhas. Me atribuindo a responsabilidade sobre elas. E olha que eu era o caçula!!
    Uma coisa até meio difícil de entender hoje em dia.

    É isso Luciana.

    Um beijo.
    Paulo.

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    Respostas
    1. Dear Paulo, tudo bem?

      Passamos perto de Pirassununga nesse início de ano, mas resolvemos torrar a paciência de outros amigos em Catanduva e do Dionei em Campinas... :) Parece que já faz tanto tempo desde que levamos - que absurdo - a Frida para atazanar e sujar a sua casa!!!! KKKK! Nunca vou me esquecer do carinho com que vocês nos receberam e do parabéns singelo, mas sinceramente afetuoso que vocês prepararam para o Romulito. Sempre agradecida!

      Sim, os filhos se vão. Que bom!!! KKK!! Eu não sou dessas mamães-ganso não, caro Paulo. Bernardo vai sofrer mais do que eu, pois ele é muito coruja com os meninos. Sei que tenho filhos homens e que eles podem sumir no mundo. Homens são assim, ainda mais se escolhem casar com mulheres loucas e estranhas, como aconteceu com o meu irmão mais velho, que desapareceu da vida da gente. Mamãe sofria em silêncio, eu sei.

      Gostaria que meus filhos seguissem sendo meus amigos, mas não sei o que será deles lá pra frente. Torço para que se casem com meninas bacanas e descoladas e que eu possa ter, enfim, filhas do coração! Sim, sinto falta de ter uma filha. Nunca serei totalmente completa sem ela. Já me sinto só hoje, pois todos os programas de menina eu faço completamente sozinha. Meus filhos não curtem feirinhas, passeios pelas vitrines, salão, roupas, of course e ainda bem. :) Pelo menos eles curtem filmes, principalmente Tomás. Então eu tenho um companheiro para isso.

      Lembro bem dessa época-orelhão. Aguardava Bernardo me ligar da praça em Campinas depois das 22h30, que era mais barato, né?

      Você, com certeza, foi um filho afetuoso e atencioso. É da sua natureza essa cordialidade e essa compreensão com o feminino. Acho que o Tomás é assim. Mas o Rômulo... Xi, é igual ao Bernardo, ou seja, um cara muito misógino, muito voltado para o universo racional masculino.
      Abraços fraternos e agradecida por essa troca carinhosa de experiências,

      Lulupisces.

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  4. Lindo Luciana, parabéns! bjs.

    Telma Kaur

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  5. Concordo com cada palavra. Cada um tem o direito de ter sua própria história.

    Bjos,

    Monalisa

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