Om mani padme hum*





Já não sei mais quando ou como me tornei amiga da Lara. Aos 43 a gente começa a esquecer detalhes precisos de fatos importantes. Mas foi por volta dos seis anos, na primeira série do colégio Notre Dame. 

Também não me lembro como e por que a nossa amizade foi se fortificando. Ao dar por mim, já pertencia à casa dela, de onde entrava e saía sem a menor cerimônia, pois éramos vizinhas de quadra e, desse modo, tudo ficava mais fácil. Sem contar que naqueles idílicos anos setenta, os pais eram mais relaxados e as crianças mais soltas nas ruas... 

Estava ao lado da Lara na traumática separação de seus pais. Acontecimento tão corriqueiro hoje, mas quase inédito então. Talvez tenha sido a partir desse ponto que tenhamos nos tornado melhores-amigas-de-infância. E assim fui vivendo a minha vida junto com a dela. Invejando as aulas de piano que ela tinha em casa com piano de verdade e eu não. Colocando aparelho nos dentes na mesma época, repartindo com ela aventuras rurais na fazenda da minha família. 

Mas voltando à quadra 714 sul, na casa da Lara era sempre brincadeira. E essa liberdade de pegar cortinas e transformar em vestidos de princesa, bagunçar tudo e deixar bagunçado, entrar no jardim de inverno e conversar com os anões da Branca de Neve tinha um patrocinador: "Seu" Carioquinha, o pai da minha amiga. 

O que dizer do pai da minha amiga? Oras, o “Seu” Carioquinha era uma figura excêntrica. E eu, uma alma artística, sempre adorei os diferentes. Com seu jeito manso e voz retumbante, o pai da minha amiga acabou me adotando, a menina órfã de pai. E eu achei foi bom. 

A casa regida por “Seu” Carioquinha era um espaço democrático para por em prática qualquer invenção. Serei eternamente grata ao pai da minha amiga, que me proporcionou aulas de piano, sem ser aluna regular; aulas de inglês com professora particular sem estar matriculada e muitas toalhas de mesa para as nossas reproduções das cenas da novela Escrava Isaura. Inclusive aquela azul, de cetim, que ficava ótima na gente, não é, Lara? 

Do Banco do Brasil, seu Carioquinha trazia inúmeros formulários para a filha brincar de banco com a gente. Mas quando eu via aqueles papéis rosas, amarelos e brancos, fugia da brincadeira como o diabo da cruz. Resultado: Lara é contadora e eu? Sonhadora. Sempre incentivada por “seu” Carioquinha, um dos primeiros adultos a ler minha pasta de poemas e tecer empolgantes elogios. 

“Seu” Carioquinha que me levava ao clube da AABB e pagava todas as batatas-fritas. “Seu” Carioquinha que não dizia não para o conserto de qualquer bicicleta de moleque que lhe pedia socorro. “Seu” Carioquinha que tinha um jardim que parecia uma floresta dos contos de fada. “Seu” Carioquinha que estava sempre a postos para arrumar o som das festas do colégio Notre Dame. 

Nunca vou me esquecer da belina vermelho-marrom e da farra que a gente fazia dentro dela. Nunca vou me esquecer que “Seu” Carioquinha disse que eu havia sido uma princesa persa na minha outra encarnação. De seu carinho contido, mas perceptível. 

O pai da minha amiga sempre foi generoso. E com suas mãos derramou bênçãos de Reiki sobre o meu corpo que pretendia engravidar. Sobre o corpo de minha mãe, quando sofria por causa do câncer que acabou lhe consumindo. 

“Seu” Carioquinha estava na cerimônia do meu casamento e quando meu primeiro filho nasceu, visitou-me com presente gravado: "Tomás é um ser do fogo violeta. Tomás é a pureza que Deus deseja! OM MANI PADME HUM”. Como se já previsse que eu descobriria meu equilíbrio por meio do yoga.

Seu Carioquinha que, mesmo adoentado, não deixou de comparecer a várias festinhas de aniversário dos meus guris. Numa delas, inclusive, entrou no espírito da coisa e foi o mais elegante caipira do arraiá! 

E por último, mas não menos importante, nunca vou me esquecer de sua imagem altiva à porta, na penumbra, se despedindo da dupla de amigas de infância já adultas, saindo em conversa animada. Parado no portão da garagem, ele nos acenou como se tivesse consciência de que seria a despedida derradeira, algumas horas antes de sua passagem.

Por isso, hoje, escrever sobre ele seria a minha homenagem mais natural. É o fim de uma era encantada. Agora me sinto menos criança... Menos filha. A infância cada dia mais longe, mais enevoada. Vá em paz, “Seu” Carioquinha! E continue zelando por nós da sua poltrona celeste! 



*Om mani padme hum significa "da lama nasce a flor de lótus" é um dos mantras do budismo; o mantra de seis sílabas do Bodisatva da compaixão: Avalokiteshvara. De origem indiana, de lá foi para o Tibete. O mantra é associado ao deus de 4 braços Shadakshari, uma das formas de Avalokiteshvara. É o mantra mais entoado pelos budistas tibetanos. 

Om fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino dos deuses. O sofrimento do reino dos deuses surge da previsão da própria queda do reino dos deuses (isto é, de morrerem e renascerem em reinos inferiores). Este sofrimento vem do orgulho. 

Ma fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino dos deuses guerreiros (sânsc. asuras). O sofrimento dos asuras é a briga constante. Este sofrimento vem da inveja. 

Ni fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino humano. O sofrimento dos humanos é o nascimento, a doença, a velhice e a morte. Este sofrimento vem do desejo. 

Pad fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino animal. O sofrimento dos animais é o da estupidez, da rapina de um sobre o outro, de ser morto pelos homens para obterem carne, peles, etc; e de ser morto pelas feras por dever. Este sofrimento vem da ignorância. 

Me fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino dos fantasmas famintos (sânsc. pretas). O sofrimento dos fantasmas famintos é o da fome e o da sede. Este sofrimento vem da ganância. 

Hum fecha a porta para o sofrimento de renascer no reino do inferno. O sofrimento dos infernos é o calor e o frio. Este sofrimento vem da raiva ou do ódio.



Comentários

  1. Linda homenagem estou aos prantos, é o fim de uma era muito feliz das nossas vidas com o seu Carioquinha sempre ao nosso lado. Que ele já esteja descansando em paz, pois era um espírito evoluído de luz!

    Adriani

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  2. Lindo texto... Pra variar, Luciana Assunção sempre emocionando com suas histórias...

    Ana Cláudia

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  3. SHOW, LUCIANA!

    Claudia Demenjour

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  4. Muito comovente...envio as melhores vibes para o Seu Carioqiinha.
    Namastê!

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  5. Qualquer pessoa que inspire alguém a escrever algo tão lindo só pode ter a alma igualmente bela. Esse eu tive a sorte de conhecer. E de ouvi-lo cantar!

    Valdeir Jr.

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  6. A despedida é sempre dolorosa. Ainda mais de alguém que mais do que "o pai da sua amiga" se tornou um pai pra irmã que essa amiga ganhou da vida. Que ele tenha descanso e que o seu coração tenha consolo. O seu e o da sua amiga de sempre.

    Bjs,

    Regina Célia

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  7. Então, lembro bem do Seu Carioquinha, de nós fazendo trabalho com enciclopédias espalhadas sobre a mesa grande da sala e de nossos corre-corres pela casa, realmente ele nos deixava livres e felizes sendo crianças! Tenho lembranças boas... bonita homenagem, Luzinha e força para todos!

    Patrícia.

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  8. Bem, somente hoje, mais de um mês depois, me atrevo a deixar meu comentário aqui. Fiquei muito emocionada com este texto. Li na manha do sepultamento. Cheguei a levar impresso para lá, mas não conseguiria ler. Obrigada por tudo que escreveu e por todo o seu apoio. Eu estou levando na moral, como diria meu pai. Mas ao reler o texto, aquele nó voltou a se formar na garganta. Enfim... Todo mundo diz que é uma questão de tempo... Não sei... Acho que não vai passar nunca... Nem sei se quero que passe. Não me peçam coerência.

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