Poço dos desejos


Como estou poupando minha cervical nestes dias de dores intensas, vou aproveitar para postar no blog alguns textos inéditos que tenho guardados no computador. 

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com as personagens é mera coincidência, galera!


De novo. De novo ela acordou no meio da madrugada com a respiração ofegante, uma ânsia que subia do estômago aos olhos. Foi até a cozinha e comeu uma banana. Abriu a geladeira e tomou um iogurte de maracujá. ‘Maldita insônia’. Tentou dormir novamente no sofá da sala, mas a fome não passava. Uma fome de músculos e lascívias. "Que réveillon do milênio que nada. Eu quero é o homem do milênio". 

Vinha tendo uns sonhos eróticos ultimamente. Tentou evocar outro na esperança de aplacar o buraco no estômago. Lembrou do Fábio. O único cara interessante dos últimos tempos. E se eu o convidasse para ir ao cinema. Mentalizou a cena toda. Lá no escuro ela ganharia coragem. Fábio, você vai achar que eu sou louca, mas eu preciso fazer uma coisa. Eu preciso saber. E lascaria um beijo daqueles meio desajeitado e suplicante, agressivo de desejo represado e de repente solto. Ele ficaria atônito, mas não se intimidaria. ‘Isadora, você vai achar que eu sou louco, mas eu também preciso saber’. E a arrastaria para o motel mais próximo. 

Ah, como é bom poder imaginar tanta loucura. Mas ficar só de pensamento é fogo. Bem que papai Noel podia trazer um homem embrulhado para presente. Olhos brilhantes e mãos fortes enlaçados em fita vermelha. Ao apertar um botão no rumo do peito, umas frases gravadas: Ai, como te quero. Você é toda minha, tesão. Ainda não inventaram? Seria um grande sucesso de vendas neste final de século, gracejou para si mesma. 

O sono que não vinha. Continuou a mentalizar Fábio. Fábio se materializando no meio da madrugada. Segurando-a pelo braço, frente a frente, olho no olho. ‘Que ar de sacana que ele tem. Putz, me deixa doida. Será que ele beija bem? A eterna dúvida. Nada pior que um beijo ruim. Tenho certeza que ele também tem uma quedinha por mim. Se eu desse mole aposto que ele caía. Aposto. 

Dez para às cinco.‘Caramba’. Antes de ontem tinha sido um sonho louco. Um homem sem rosto enfiava a mão dentro de sua calcinha e arrancava suspiros. Pensou no que disse a astróloga. "Você precisa de sexo. É muito dengosa e sensual". Coisas de fim de milênio procurar desvendar o destino nas cartas do tarô. Mas nem precisava de mapa astral algum para saber o que era óbvio. 

Levantou do sofá, foi ao banheiro. Lavou as mãos. As unhas pintadas de um vermelho encorpado, quase vinho. Olhou-se no espelho. Era uma mulher interessante. Exótica como muitos gostavam de dizer. Era capaz de prender a atenção numa mesa cheia de gente. Arrancava olhares furtivos. ‘Ainda é tempo. Não tenho nem trinta’. Não era a primeira vez que esta fome lhe acometia. Houve outras fases de calores e angústia. Mas agora estava mais forte. Comichão de ganhar o mundo. Jogar fora dez anos de investimentos. 

Sentou na poltrona resignada. A madrugada estava bonita. Luzes de Natal enfeitavam as janelas dos outros apartamentos. ‘Hoje a respiração dele não está forte. Parece que nem existe’. Mas já houve um dia em que só ele existia. Um aprendiz voraz dos prazeres da carne. "Como você está singela hoje, Isadora". Acho que foi ali que ela se apaixonou. Aceitou o desafio de confundir aquela cabeça exata. Aquele ar de quem já tinha a vida planejada para os próximos cinquenta anos. 

Um mês. Um mês que ele não me toca. Acho vocês o máximo. Estava falando do casamento de vocês para a minha amiga. Um exemplo de casal que vive super bem. Que piada! Mas quando foi que tudo começou? A que horas? De que dia? De que mês? A partir de que momento ele deixou de me querer? A partir de que minuto eu deixei que ele deixasse de me querer? 

Nada de viagem pro Rio. Não quero ver fogos porra nenhuma! Queria pipocos dentro de si. Aquela alegria de mulher bem desejada. A noite foi se desbotando, perdendo seu negrume. O cinza tomou conta dos edifícios. As luzinhas de Natal empalideceram. Mais uma noite em claro. Assim vou acabar doente. 

Sábado. Faltava comprar alguns presentes. Ligar para algumas pessoas. Será hoje? Hoje enfim ele vai redescobrir que eu existo? Caminho, meus peitos estão na moda, assim grandes. Passo cremes, faço massagens, ganho elogios aqui e ali e ele nem parece que existe. Dormindo... Todo calmo enquanto esse fogo me come viva. Sentiu frio nos pés. Este fim de século está tão chuvoso e esquisito. Olhou mais uma vez pela janela, flagrando o primeiro raio amarelo romper as nuvens carregadas. Abraçada ao cobertor, foi até o escritório e abriu a agenda na letra efe.



Comentários

  1. Ô Luciana, o inverno começou oficialmente ontem, o frio nem mandou lembranças e você contribui ainda mais para aumentar a temperatura com esse texto? Ulalá!

    Ora na 1ª pessoa, ora na 3ª pessoa, você deu um presentão para todas as pessoas do lado de cá.

    Valdeir Jr.

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  2. Amado primo,

    muito grata! Sabe, sem modéstia, eu também gosto muito deste texto. De vez em quando a gente acerta no alvo, não?

    Saudades,

    Lulupisces.

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  3. Uau! quente, forte,muito sensual este texto...gostei muiiiitoooo!!!
    bj.Namastê!
    Cynthia

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  4. Ah esqueci de comentar...adorei a nova foto, esta tem mais a ver com você...a lulupisces...
    Cynthia

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  5. adorei! f de fantástico! Bjs, Débora

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