Mãe, mãezinha, mamãezinha, mamãe

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
(Dona Doida - Adélia Prado)

Será que todo mundo sente falta da mãe como eu sinto? Porque a falta que minha mãe me faz me parece tão absurda e sólida após dois anos e alguns meses que não sei se vou me adaptar a seguir como órfã, ovelha desgarrada sem filiação. 

Mas nada posso fazer, a não ser não ser mais feliz. Esse conceito deixou de existir como ideal a partir do momento em que não posso ligar para minha mãe todas as noites e bater um papinho sobre a nova novela das nove. 

Será que todas as pessoas sem mãe vivem a falta dela como eu vivo? Acho que sim. Mesmo as que nunca tiveram mãe, sentem falta da mãe sonhada, da mãe de revista, da mãe que bem podia ser igual a daquele amigo meu, afável e protetora. Daquela mãe pra chamar de sua. 

E os que dizem odiar sua mãe ou não precisar dela também sentem. Sentem por não ter tido uma mãe-modelo, uma mãe menos complicada, uma mãe como qualquer outra... Uma mãe, oras bolas, com todas as implicações maternais que envolvem esse cargo vitalício, mas não eterno. Que pena! 

Ontem experimentei uma recaída de colo. Um desabrigo... Vi um filme e a mocinha corre para o abraço do pai. Na outra cena, para a casa da avó. Ter uma casa para fugir e voltar a ter suas idades anteriores é o paraíso. Sem mãe a gente não tem mais como esquecer de ser mãe e ser apenas filha. E ser mãe não aplaca a dor de não ser mais filha. Nada aplaca. 

Pra quem pedir: “faz aquele mingau pra mim?” aos 41 anos? Só mãe entende essas crises de carência absoluta. Uma amiga minha diz que existe um AMM e um DMM. Eu acredito. Antes da Morte de Minha mãe eu ainda experimentava esse mundo de sabores infantis. Depois da Morte da Minha Mãe, restou somente a vivência do presente um pouco desbotado. 

Passo ao lado do porta-retratos que automaticamente vai derramando novas fotos. A tecnologia me dá sustos porque eu olho e lá está mamãe com seu sorriso transbordante. Por uma fração de segundos penso que ela respira e seu cheiro de roça curtida ainda me acalenta. 

Não sei se arranco tudo ou deixo tudo. Não sei. Abraço meus filhos na angustia de mostrar para eles que eu hoje estou de carne e osso. Como se explicasse: aproveitem dessa alegria, pois amanhã pode ser jamais.


Comentários

  1. Adorei a frase: "Ter uma casa para fugir e voltar a ter suas idades anteriores é o paraíso". Mães adoram que seus filhos regridam né...rs.

    Deixe as fotos de D. Maria lá, se derramando, e derrame suas lágrimas também, continue rememorando os momentos que só vocês duas viveram... converse com ela à noite, eternize-a sempre...

    Agradeça por ter tantos sentimentos bons e carências de mãe!

    1000 Bjs
    Patty

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  2. Senti sua saudade! O texto é provocante, principalmente por ser de uma sinceridade admirável.
    Deus te abençoe!

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  3. "Amanhã pode ser jamais"...tenho experimentado muito isso Lu,pois como você sabe,minha mãe,mãezinha, minha mamãe, ainda está viva em carne e osso, mas acamada,totalmente dependente,vivendo num corpo rígido,nenhuma flexibilidade, espírito prisioneiro,apenas aguardando o momento da passagem.Eu aproveito para estar com ela todos os dias,cada minuto nosso é uma eternidade, pois sempre penso que no dia seguinte posso não mais tê-la comigo, e aí, bate já a maior saudade...Lendo o seu texto, me imaginei amanhã,antecipando assim tudo aquilo que já sei que irei sentir...assim como você.
    bj.Namastê!
    Cynthia

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  4. Lindo texto! Quanto sentimento!!! Que sua mãe esteja coberta de luz agora e, imagino, está sorrindo para você de lá, doida para te fazer um mingau... se pudesse! Que seu vazio possa um dia doer menos! Bj - Claudia

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  5. Não acredito que haja palavras para consolar quem está sentindo saudade...
    Mas tente perceber que ela ainda está junto com você.
    Se você fechar os olhos e conversar com ela, vai perceber que ela até te responde.
    Não vai ser a mesma coisa, claro que não.
    Mas tente tirar de seu coração esta idéia do jamais, porque é isso que fica te fazendo sofrer e isso não é real.
    O reencontro é certo!

    Que Jesus te console.

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  6. Oi Larinha, obrigada!

    O que me faz sofrer é a saudade mesmo. É a falta de convivência. Minha mãe era muito especial, muito marcante, muito legal e estava na minha casa quase todos os dias!! A gente sente a falta dela, não tem jeito. Até o Bernardo sente, o que é incrível para um genro.:)
    Acredito que minhas outras irmãs não sintam tanto como eu, pois era na minha casa que mamãe se aninhava. Ela ficava ali, passando as tardes vendo suas novelinhas... E comia com a gente e depois pegava o carro e ia para a casinha dela.
    Edu e eu, com certeza, somos os mais órfãos dessa companhia constante de Dona Maria.
    Uma pessoa assim tão poderosa deixa um poderoso vazio.
    Ele não será preenchido, fazer o quê? Viver.

    Abraços fraterníssimos!!!

    Luciana.

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  7. Siga em frente, continue escrevendo no seu blog, que é muito lindo!

    Seus escritos são mágicos! Você tem a sensibilidade da mulher que vai fundo nas suas experiências e as partilha.

    Grata por isso!

    Abreijos de feliz final de semana,

    Guti.

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