Não seja por isso

Sei que as pessoas estão pulando na jugular uma das outras.
Sei que viver está cada dia mais dificultoso.
Mas de novo vos digo: sejamos delicados.
E, se necessário for, cruelmente delicados

(Affonso Romano de Sant’Anna)

Talvez não seja o momento mais adequado, quando o país pega fogo literalmente. Esse clima selvagem, com a seca a maltratar nossos corpos de norte a sul. Acho que nunca vi o Brasil sofrer tanto com a estiagem. O fim dos tempos parece cada dia mais palpável. Nossos desmandos contra a natureza também.

Mas o que mais me aflige atualmente, apesar de estar rogando a Deus como uma sertaneja pra chuva cair nesse sertão, é a indelicadeza sistematicamente crescente das pessoas. Não sou a única a perceber tal fenômeno atmosférico, ainda bem. Sinto em alguns textos (e em alguns incautos) a preocupação em resgatar o que há de humano na espécie.

De quando em quando, a gente vê um adesivo no carro que pede gentileza. Uma crônica que nos faz sonhar, um obrigado desavisado, um presente sem data marcada... Mas esse movimento não parece fazer frente à avalanche de grosserias diárias a que somos submetidos. A impressão que tenho é de que o importante é “impermanecer”.

Sei que não tenho o direito de criar neologismos na terra de Guimarães Rosa, mas essa frivolidade me fere como uma faca. Ninguém se lixa, ninguém quer saber. O que vale é viver inconsequentemente cada dia como se fosse o último, e isso, claro, significa passar por cima dos outros sem cerimônia e literalmente, no mais das vezes.

Ontem eu parei na faixa de pedestre, mas um caminhãozinho que vinha ao meu lado seguiu como se nada estivesse acontecendo. Quase atropela o rapaz que, por milagre ou sorte, não tinha alcançado o meio da rua. Falando em vias públicas, a manchete de jornal dizia que o fusca do cara pifou no meio do caminho. Outro motorista enfurecido com o problema matou o coitado. Tirou a vida do semelhante porque o carro dele estava atrapalhando o tráfego. Chico Buarque, meu caro amigo, você nunca esteve tão atual.

Hoje as pessoas acham que podem falar o que bem entendem para qualquer um a qualquer hora. Cordialidade, semancol, decência são comportamentos obsoletos. Você dá um presente de aniversário para um amigo e ele dispara: “não gostei!”. Tudo bem, é chegado, é íntimo, mas nem por isso a gente quer saber. Gentileza, otimismo e compaixão são o tripé que alimenta a sensação de ser feliz por mais tempo. Só para lembrar aos que confundem liberdade de expressão com falta de tato e gosto.

Não sei se é culpa das novas tecnologias que nos escondem atrás da tela do computador e dos torpedos dos celulares, vaporizando sentimentos e cortesias. Não sei se estamos imersos em um comportamento típico das sociedades que atingiram o ápice do capitalismo – o que nos faz recordar que, para todo apogeu existe um declínio – não sei. Não sou filósofa, antropóloga ou socióloga. Essas profissões, inclusive, estão em baixa (seria mais um dos efeitos sintomáticos da nossa degradação como coletividade?) Todo mundo quer fazer Direito porque a grana é boa. Em terra de poucos letrados, quem tem um título de doutor é rei.

Em uma coincidência temática, revi o belo filme do mestre Kurosawa, ‘Dersu Uzula”, na mostra de filmes que está em cartaz no CCBB. Um épico ecológico-humanista de 1975, entretanto de conteúdo que nos confronta com o mundo-cão que a gente vive agora. Quando a projeção terminou, fiquei a me perguntar: onde se esconderam a pureza de propósitos, a ética da verdadeira amizade? O respeito pela simplicidade? Ó corações rudes, acordai-vos!

A felicidade mudou de casa, trocou de roupa, de carro, de blueberry. Mas nada adiantou, porque não somos felizes por adquirir bens, e sim por projetos de vida. Recente pesquisa sei lá de onde chegou a seguinte conclusão: para alcançar a paz de espírito é preciso investir em produção de memórias afetivas. Sinto informar que elas não vêm necessariamente como acessório do último modelo da Tucson. Tenho frequentado o Templo da Terra Pura aos domingos. Entre os ensinamentos budistas está: viver livre dos condicionamentos, das ilusões imediatas. Eis um objetivo a se almejar e praticar um pouco a cada dia.

E para terminar, uma pequena parábola de Rômulo, meu filho de três anos: O menino entrou no banheiro onde a mãe se arrumava para ir ao trabalho. O relógio em cima da bancada atraiu o olhar e as mãozinhas do garoto. “Vou colocar o relógio em você, mamãe." A mãe respondeu: "Não precisa, meu filho, mamãe já está com um relógio, olha aqui" - e mostra o pulso já ornado com outro marcador de horas. O sensato guri replicou: "Mas pra quê você tem dois relógios, mamãe?”

Comentários

  1. Comento pra você saber que li: simplicidade e gentileza são boas metas pra todo mundo. Podemos temperar com bom humor e sensibilidade. E como somos humanos, umas pitadas de perdão e também permissão, pelos dois relógios, 4 (ou 10) pares de sapatos, e bola pra frente. Beijos.

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