Fotogramas

Se a vida não faz sentido por que é que morrer haveria de fazer?
Arnaldo Antunes e Nando Reis

Tenho mania de rever trechos de filmes ao acaso. Não importa se são do início, do meio ou do fim. A ordem dos fatores não altera o produto, já dizia irmã Servácia, a professora de matemática da quinta série. Só existe uma única regra para o meu passatempo: não vale pegar pedaço de filme que eu já não tenha visto integralmente. Cinéfilos não devem estragar o prazer do ineditismo por causa de alguns minutos.

Meu marido acha que não bato bem porque vejo filmes em pedacinhos. A questão é que ele não capta o deleite dessa prática. Rever, rever e rever uma película que agrada a gente é o mesmo que bebericar o mesmo bom vinho em várias oportunidades diferentes. Ou desfrutar daquele tipo de bombom preferido sempre que tiver uma chance. Não dá para deixar passar, entende?

Com o advento da TV a cabo, cultivar esse tipo de maluquice ficou ainda mais fácil. Na época do videocassete, era um tal de apertar o rew pra cá, o foward pra lá e sair copiando os diálogos da história num caderno. Nesse mesmo caderno, eu também fazia uma classificação com estrelas para todos os longas-metragens a que assistia. Nada como ser jovem, desprovida de coisas mais bizarras pra fazer como, por exemplo, limpar meleca do nariz do filho. O tempo tinha outra dimensão, podes crer.

Um dia desses, entre uma série e outra, peguei um momento do filme “Lado a Lado”. Quando o vi da primeira vez, não me disse muita coisa. Gênero de diversão gás lacrimogêneo, apesar das presenças estupendas de Susan Sarandon e Ed Harris, atores que admiro.

Entretanto, quando mudei de canal e revi Susan, sempre bela e poderosa, na cena em que se despede do filho antes de sucumbir ao câncer, tudo fez completo sentido. Ela diz ao pimpolho que eles poderão conversar por meio dos sonhos. E eu descobri que não se trata de frase de efeito: realmente acontece.

Acabei de perder minha mãe. Sinto tanto a falta dela que, às vezes, tenho a nítida sensação de que meu peito está em queda livre. Mamãe era minha leal companheira para todos os programas de índio. Vamos à feira? Sim. Ao supermercado? Claro. Comigo aos exames de laboratório dos meninos? Sem dúvida. Faz aquele mingau de maisena com chocolate? Faço. Galinha caipira com pequi? É pra já.

Não estou falando nenhuma novidade. Acho que a maior parte das mães é assim mesmo. Você que me lê agora deve ter memórias semelhantes. E aí reside a mágica desse relacionamento. Profundo na superficialidade das atividades rotineiras. O interessante foi mudar a minha percepção sobre o filme: de meloso passou a contar uma história crível.

O diretor de “Lado a Lado”, Chris Columbus, estava certo: nós temos os sonhos e neles nos reencontramos com quem amamos. Nessa semana eu sonhei com mamãe. Ela estava exatamente do jeito que era, serelepe e pronta para sair comigo para onde quer que eu fosse. Maria chegou a enumerar todas as feirinhas, lojinhas e bobeirinhas que a gente iria fazer juntas naquele dia. Acordei com coração embrulhado em paz.

E, então, frente a frente com esse exato trecho do filme, intuí que era mamãe que estava ali, me dando um recado. Já na leitura dos créditos, percebi que o longa foi feito “in the lovely memory of Irene Columbus”. Que bonito poder criar uma obra em homenagem à própria mãe! Mostrando suas recordações, o diretor atingiu dezenas de milhares de filhos que conversam com suas saudosas progenitoras em sonhos.

Ao promover essa interação, Chris Columbus elevou um simples trabalho de sessão da tarde à categoria de pérola. O que me leva a uma conclusão um tanto óbvia, mas válida: toda forma de arte carrega em si essa necessidade de identificação. Nada além de um narcisismo inofensivo que movimenta milhões em lenços de papel mundo afora. Snif!

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