Era pra ser uma manhã como as outras

Ela sai da cama na marra. Não, ela não é dorminhoca, pelo contrário. Inveja os que avançam pelo sono durante a manhã. Mas ela precisa. É hora de começar uma rotina de caos: aprontar dois meninos e ela própria para a lida do dia. Colégio, trabalho, café da manhã, lanche, uniforme, choro, chateação, escovar os dentes, lavar as mãos, colocar tênis, trocar o cocô do mais novo, que ignora o vaso sanitário, gotinhas homeopáticas... Ela pensa: um dia terá saudade de tudo isso? Tudo isso é realmente inesquecível? Ou traumático?

Não cansa de achar que tem algo errado com a ordem do universo...Por que as mulheres inventaram esta tal emancipação?... A grana no fim do mês é boa, mas fazendo as corretas deduções emocionais, não há lucro. Perda no mais das vezes. Empate se o parceiro for humano o bastante para saber que o fardo precisa ser compartilhado.

Não são nem oito horas e parece que o dia está na metade. Ela sai pela porta esbaforida, quase descabelada, cheia de coisas nas mãos: chaves do carro, da casa, frutas para lanchar – estar em forma não é opção – agenda, bolsa e o cérebro em curto circuito. Abre a porta do elevador (por que ainda não trocaram esta geringonça pelos modernos sem portas?)

O olho, esta câmera perfeita de alta sensibilidade ao movimento, que maravilha! Ela capta uma sombra entre o fugaz e decisivo momento de colocar o pé na caixa metálica e abandonar definitivamente o hall do apartamento. “Uma barata!”, ela grita em 300 decibéis (não sabe como a prumada inteira não acorreu em seu socorro).

Consegue se lançar num salto abrupto e contrário à inércia de quem já estava com o corpo quase lá. Ela recua apavorada e foge rumo ao elevador de serviço. Este sim, o que seria mais passível de transportar passageira tão indesejável, uma vez que carrega o lixo produzido pelos moradores. Por ele desceu angustiada, sem antes checar com minúcias cada cantinho do cubo.

Parou no térreo em vez de ir direto para a garagem. Não poderia deixar uma barata parada no andar de sua casa. E se aquele ser asqueroso saísse dali e decidisse passear pela cozinha dela? Correu ao botão do elevador social e apertou. Ufa, agora a urgh-blerg-disgusting espécie que consegue provocar repulsa irracional em milhares de mulheres emancipadas, descoladas, geniais e inovadoras mundo afora viajaria de volta ao pilotis. Com muita sorte, ela não teria deixado há tempo o elevador antes de retornar de onde não deveria ter vindo. Com mais sorte ainda, ela receberia a amarga e justa morte que lhe cabe, esmagada por um sapato potente e corajoso.

Mas a vida, dali pra frente, nunca mais seria a mesma. Disso ela tinha certeza. Se já não bastasse Brian de Palma ter criado aquela imagem aterrorizante da loira que ataca quando a porta do elevador se abre, agora ela também teria que lidar com a cena de “Alien, o retorno”, quando o monstro – ainda menos abjeto que uma barata – demonstra inteligência para pegar o elevador e perseguir bravas e independentes mulheres indefesas.

Qualquer semelhança com personagens e situações não foi mera coincidência. A mulher vai pegar a escada e torcer para que as baratas não pretendam manter a boa forma também.

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