Moral da História

“Ai de mim...sempre em mim...”
(Clarice Lispector)

Com mensagens edificantes em power point pululando na caixa de entrada dia sim e outro também, como não se sentir tentada a elaborar meu próprio texto de autoajuda para amparar a mim mesma? É impressionante como as pessoas querem ser lidas, ouvidas, comentadas. Precisam desesperadamente dar “lições de vida”, contar suas histórias de superação.

Andy Warhol foi mais brilhante por visionar a necessidade de brilhar do ser humano (nem que por apenas 15 minutos), do que por sua qualidade como artista (sem desmerecê-lo, porque gosto do jeito pop, mas a frase, sim, ela é definitiva). Portanto cá estou eu aqui expondo experiências pessoais em conta gotas neste blog alheio. Também sou cria deste tempo, né?

Por isso quero contar que voltei a andar de bicicleta após quase um ano do acidente. Foi tão libertador e divertido quanto pode ser o vento no rosto com o sol por trás, ou seja, não fiquei traumatizada com a minha bike. Um alívio perceber que as sequelas, neste caso, serão apenas no campo corporal.

Vinha ensaiando este retorno a algumas semanas, mas receava não me sentir segura para alcançar o guidão, uma vez que meu braço direito ficou com um encurtamento que não salta aos olhos dos outros, mas faz grande diferença na realização de diversas tarefas, entre elas, alcançar o freio da bicicleta.

E, então, eu preciso apertar o reward para entender que, se agora posso novamente me divertir em cima de um veículo de duas rodas, é porque um longo e doloroso caminho de reabilitação está sendo trilhado. Há quase um ano venho batalhando em torturantes sessões de fisioterapia para recuperar a extensão total do meu braço.

Nestas horas é inevitável pensar como o corpo humano é perfeito, mas também como esta perfeição é fragilíssima, tão pronta para desabar em qualquer instante de distração. Um tombo idiota de bicicleta me deixou incapaz por meses de lavar a própria cabeça, de usar o fio dental ou escovar os dentes com a mão direita. Um deslize me deixou marcada para o resto da vida com dois pinos no cotovelo. Meu braço estala como pipoca na panela para me lembrar que não estamos aqui apenas a passeio.

Engraçado que vinha pensando em Uri Geller há algum tempo e nem sabia se ele estava vivo. De repente a figura reaparece como amigo do Michael Jackson. Sempre estou com o mentalizador ao meu lado quando a fisioterapeuta me põe para ralar. Se o cara consegue entortar faqueiros de 200 peças com a força do pensamento, eu também estou pronta para comandar bíceps e tríceps desobedientes e enfraquecidos pela lesão: “vai, vai, estica, alonga, força, vai”.

Puff, puff, puff...É extenuante. Agora levo o Uri muito mais a sério. Tem de ser monge budista em último estágio de evolução (analogia roubada de uma amiga querida) para obrigar o cérebro a fazer alguma coisa que ele não quer. Parece que o danado tem vida própria. Essa massa encefálica aí dentro me pertence? Quem me garante?

Não desista, irmã, a luta continua! Mesmo sabendo que seu braço nunca mais será o mesmo. Ofereça a outra face quando ouvir a verdade excruciante da boca da fisioterapeuta: “você precisa entender que seu braço não tem mais a sua idade. Com o acidente, ele envelheceu”.

OK: vou ranger como uma dobradiça enferrujada aos 38 e quando chegar aos 60 meu braço estará morto e enterrado. Pretendo também detectar chiados esquisitos neste braço como observei na minha própria bike, que ficou quase um ano ganhando poeira pendurada na garagem. Choquinhos desagradáveis vão percorrer meu pulso quando eu menos esperar para me alertar que “a vida é breve e o amor mais breve ainda”.

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