Verde esperança (na humanidade)


Janeiro, época tradicional da pamonha. Milhos verdinhos, molezinhos, safra tinindo, prontos para se transformar na melhor das iguarias goianas. (Não adianta: nenhuma pamonha de nenhum outro estado é tão autêntica e saborosa). Aliás, os goianos acabaram de proclamar o 3 de fevereiro como o Dia Estadual da Pamonha. Mandaram bem. Patrimônio gastronômico, oras.

No trajeto de volta da saga nordestina pela rodovia JK, que trouxe para o planalto central tantos piauienses, baianos, maranhenses, nordestinos e nortistas irmanados no sonho da capital modernista, existem algumas pamonharias saudando os candangos de antes e os novos candangos entre a divisa Goiás/Distrito Federal. Município de Formosa (formosa é a paisagem por ali, um prenúncio do que mais adentro se tornará a Chapada dos Veadeiros).

Tô fazendo um tremendo nariz de cera para contar que obriguei o motorista, no caso, meu marido, a parar numa dessas vendas da beira da estrada. “É tempo de pamonha. Vamos aproveitar para jantar, pois lá em casa não vai ter nada”.

Mais de dois mil km de viagem, exaustos, todavia o chamado da ancestralidade roncou mais forte. Aportamos na Tradicional para não fugir da tradição.

Barriguinha cheia, pé no asfalto. Ainda faltavam umas duas horas para, enfim, por fim a road trip épica. Entrando na garagem, me dou conta: cadê a minha bolsa? Começo a movimentação aflita no banco do passageiro. Calma, deve estar aí atrás (o carro lotado de tralhas). Não estava. Na lembrança me vem o momento no qual pendurei a alça da bolsa verde na cadeira da pamonharia e saí para tirar uma foto. Eu e os momentos de decisão do Cartier-Bresson. Depois têm coragem de dizer que a câmara do meu celular “tira fotos lindas”. Aham.

Ficou lá, gritei. A bolsa ficou lá. Comecei o momento de desespero dois: tentar conexão com a tal pamonharia num fim de dia chuvoso e trabalhoso (o proprietário havia dito que estava sozinho naquele dia, meio atrapalhado para atender os clientes). Resumindo, incluí o zap do empreendimento na lista e mandei um áudio. Enquanto isso, pensava se alguém tinha surrupiado a carteira com os cartões… E os meus óculos claros lá dentro também. Quase 5 graus de miopia atuais e eu me virando com o antigo que guardo na gaveta da cabeceira.

Meia hora de angústia e o senhor me responde numa mensagem de voz péssima que, sim, a bolsa estava lá, “guardadinha”. OK, respirei. Mas retornar 150 km de carro num domingo de noite tempestuosa, sem chance. No dia seguinte, manhã de segunda, também me parecia inaceitável. O fato é que eu não aguentava mais qualquer 15 minutos dentro de um carro após três pernas de léguas tiranas.

Iniciou-se, então, a fase três de áudios e mais áudios entrecortados: o senhor mora em Formosa, o senhor vem para Brasília durante a semana? Tenho amigos em Formosa e o senhor poderia deixar a bolsa lá? Vou lhe passar o endereço. Cada trecho da conversa levava uma meia hora para ser visto e respondido e nisso eu não conseguia relaxar da longa viagem, nem tomar um banho, nem comer. Sem contar o marido dando pitaco no meu outro ouvido.

Resumindo, o dono da pamonharia não mora em Formosa e não iria para lá tão cedo. Estava pronta para desistir e convidar algum amigo incauto para fazer a viagem até lá comigo, na segundona. Parei de olhar o celular e fui colocar ordem nas malas abertas, roupas para lavar, algo para comer, gatos para afagar.

Nisso, claro, a lei de Murphy quase fez das dela. O senhor havia me enviado um áudio sobre um casal amigo dele, clientes antigos, que estava jantando de passagem para o Riacho Fundo (uma das regiões administrativas perto de Brasília).

Só que eu levei quase meia hora para ver essa mensagem. Mandei um áudio alucinado: sim, pelo amor de Deus, mande a bolsa por eles!!!! Excruciantes minutos se passaram até que ele retornasse: ah, peraí que eles estão indo embora… Ufa, foram pegos no laço, mas minha bolsa verde estava, finally, a caminho do Plano Piloto.

Daí, o enésimo round de troca truncada de mensagens entre Victor, (Magdo?) Magno e eu. Eles na rodovia, chuva intensa. Eu na sala, tensa. O marido perturbando. Eles são confiáveis? Já tentaram combinar um ponto de encontro na pressa, com gente que nunca se viu mais gorda? De noite? Chovendo? Isso não vai dar certo… Marido chatoooo.

Podem me entregar em frente ao Cine Centro São Francisco, na 102 sul? Eita, quem conhece esse nome tem mais de 40. Daí tive a brilhante ideia - no apagar de todos os meus neurônios exauridos - de mandar o localizador da estação de metrô da 102 sul. E se eles não souberem onde fica? Marido chatoooo.

Ok, mas não perguntei que carro era, que cor… Vou estar de guarda-chuva verde! Eureka! Me avisem quando entrarem no Eixão Norte, por gentileza. Avisaram.

De repente me toquei que era uma maluca girando uma sombrinha verde no escuro na parada de ônibus, num domingo molhado. A mulher da bolsa verde, do guarda-chuva verde… Caí numa gargalhada sem freio.

Os caras devem estar pensando: essa louca gosta de verde, né? Ria demais. Nervos destruídos. Eles me viram. Eu ria. Me passaram a bolsa, eu ria. Retribuí com uma garrafa de vinho e ria. Não precisava, eu ria. Agradecia e ria. E se eles não gostarem de vinho? Marido chatoooo…


P.S.: mais uma vez agradeço ao proprietário da Pamonharia Tradicional, pelo empenho em me devolver a bolsa, e ao Victor e ao Magno, pessoas gentis e empáticas. Bom começar o ano com exemplos do que há de melhor no ser humano.



Comentários

  1. Que pamonha que deu história, hein! Muito engraçado! Parabéns!

    Mayk Oliveira

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  2. Essa garota é do barulho! Kkkkk

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  3. Oh história boa!!!li numa tacada só 😀
    e graças conseguiu a bolsa de volta👏👏👏
    Cynthia 🥰

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  4. Li agora Lu, dando boas gargalhadas! 🤣
    Homens qd querem são chatoooos mesmo!🤣

    Fátima Venceslau

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  5. Meu Deus 😦, fico daqui vendo o Bernardo - marido chato - só pode acontecer com você ( e com a Guti😂). Inacreditável. Incrível história 100% pisciana. Beijos,

    Maria Heloisa

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  6. Aquela verdade universal: tudo o que é ruim de passar é bom de contar.

    Waldheyr Jr.

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  7. Mulher do céu!!
    As pamonhas... E a sua bolsa!!
    Ainda bem que tudo terminou bem!!
    Pamonhas, eu contexto!!
    Pamonhas são de Minas, mulher!! Mas todo lugar gosta de dizer que faz a melhor...
    Até Piracicaba reclama esse título!!

    E a sua bolsa!!
    Loucura!!
    No fim, deu tudo certo!! Ainda bem!!!

    Um beijo minha amiga.

    Paulo Magno

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    Respostas
    1. Nem mesmo amigo Magno!
      Não existe pamonha melhor que a Goiana!
      Desde que daquelas "raiz", com milho verde no ponto certo, temperada com banha de porco e recheadas com generosas fatias de queijo!! Salgada ou doce.
      Iguais as que D. Maria, minha mãe, fazia...

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  8. Acabei de ler o texto... E me senti muito feliz ao ser mencionado (o ego inflou por aqui!)
    Acredito que o universo conspira à favor daqueles que praticam o bem...
    E acredito que a humanidade possa ser melhor se usufruir desse pensamento e agir de forma honesta e gentil, mesmo que em pequenos atos.
    Perdão, mas fico até tímido em escrever para alguém que domina tanto as palavras...
    Gosto de pensar que o destino nos faz de marionetes, para poder nos provar a cada momento
    E saiba que foi um prazer poder lhe ajudar, embora toda a aflição e insegurança por sermos estranhos.
    Mas, de coração, só queríamos fazer o bem mesmo!
    Ah! O vinho, excelente presente...
    Estamos guardando para uma ocasião especial
    🙏🏻 Gratidão!

    Magno

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  9. Que sufoco, ainda bem que terminou bem.😍❤️

    Renata Assumpção

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  10. Hj fui salva da gripe não piorar pela sua lembrança da pamonha e pelo video no wsp do mexidão com mocotó que a cuidadora da minha tia mandou - a pamonha do carro das pamonhas foi meu café da manhã e o almoço nordestino com caldo de mocotó e cuscuz pedi pelo iFood - tudo bem quente pra desentupir o nariz. São anjos que estão à nossa volta sempre nos ajudando, assim como os que te ajudaram a reaver sua bolsa! Obrg pela sua amizade, Luciana!

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  11. Fui eu Beth Ratzersdorf que escrevio comentário acima, já que sai sempre “Anônimo” aqui!

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  12. Muito legal esse ocorrido, Lú!! Começou bem o ano, e seu inferno astral está generoso contigo!
    Seu transportador de bolsa esquecida, agora é um admirador!
    Se sentiu honrado por citá-lo e mostrar a boa ação no seu blog!!
    Já até arrepiei qdo vi a bela mensagem dele!!
    Legal demais essa experiência...

    Marilena Holanda: 🥰😘

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  13. Luuuu, q saga... tudo por uma pamonha!!!
    Marido chatoooo.... kkkkkk

    Bianca Duqueviz

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  14. Kkkkkkk essa história da pamonha , eu todinha kkkk
    O marido chato é o meu kkkk
    Divertidissimos seus contos! Obrigada!

    Luci Mendes

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  15. kkkkk "Mulher do verde do marido chato"! kkkk Eu, a amiga que iria contigo pra Formosa buscar a bolsa se o "casal Magno maravilhosos" não tivessem te socorrido! ;) Muito bom, Lu!

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