Sob as amendoeiras


                                                                               
                                                                             “deus esteja nessa casa, em formato e coração”
                                                                                                                                        (Vital Farias)

Já na despedida, ela me disse: “Você tem uma beleza não cotidiana. É uma pessoa boa e foi muito amada por seus pais”.

Retruquei num vômito: Fui? Será? Lá vinha o gatilho da menina desprotegida parafusado no inconsciente.

Tenho certeza, ela reafirmou. Você não seria essa pessoa que procura as outras se não tivesse recebido amor.

De repente pensei que teria de reescrever a “narrativa de abandono”, assim como mudei o N de nada para N de navio; assim como parei de repetir “não conheci meu pai”, para “ meu pai morreu quando eu era um bebê de 11 meses”.

Ah, os discursos que nos constituem…

Ontem foi um dia de reencontros densos. Deu uma saudade da vovó Paula e lá estive. O cheiro da casa permanece intacto, apesar do pó que decora os móveis, das paredes meio vazias, do lar semi-saqueado pelos filhos e netos em busca da presença dela em objetos 'de vida toda'.

Olá, vovó Paula! Senti sua falta no meu aniversário. O primeiro sem seus presentes sutis. Me dei conta de que algo me levou ao apartamento e era a data: seis meses de sua partida. Passei as mãos nos braços de sua poltrona como passava pelos seus.

Vaguei os olhos pela estante e vi o meu livro no meio de tantos clássicos. Abri e reli a dedicatória que lhe fiz.

Ainda não sei se fico com o quadro de anjo-da-guarda antigo, de sua época de filha, necessitado de uma delicada restauração. Afinal, já levei aquele maior da sala, o que eu dizia pra senhora: “este aqui é a minha parte da herança, sogrinha”.

Saí de lá enraizada novamente. Eu que sempre preciso da terra e do adubo das memórias, dos laços e da rede de relações que apaziguam a criança criada “solta no mundo” (outro discurso).

Resgatei uma sacola cheia de cartões de Natal, de Dia das Mães e de aniversários com minha letra torta, adornados com colagens diversas. Desenhos infantis dos meninos, ilustrando a mulher gordinha de cabelos cinzas de mãos dadas com eles.

O sol estava lindo sob as amendoeiras. Impelida, busquei consolo na casa de outra velha senhora sábia. As árvores da superquadra 108 norte. Bati à porta de Jandira, a xará poeta da minha madrinha.

Ela sempre me recebe, ainda que atônita e avessa ao mundo dos homens. Prefere a companhia de sua gata de 140 anos e de Piolho, o yorkshire. Pensando bem, ela é bem inglesa. Adora Jane Austen e tem um piano aristocrático na sala.

Jandira fala, fala muito: “não deixe eu falar tanto, eu tenho logomania”. Mas eu quero mesmo é que ela fale, se expresse e solte suas frases poéticas sem saber que são poéticas.

Repartimos uma pera, “gosto mais do que de maçã”. E quase tivemos tempo para outro chá. Entretanto, havia um compromisso agendado comigo na mesma tarde: a sessão de terapia.

Para a analista levei o espanto, as entranhas em rebuliço com a tal história de ter sido muito amada pelos meus pais. Será, poeta? Será? Pano pra manga para Freud, Lacan, Jung, epicuristas, helenistas e estoicos.

Ah, estoicismo… Desconheço, mas almejo.


Comentários

  1. "Passei as mãos nos braços de sua poltrona como passava pelos seus"
    Eu arrepiei os meus aqui!

    Clarice Veras

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  2. Lindo texto Lu mas com uma pontinha de nostalgia😘 vc muito amada sim até quando ele nos deixou e mamãe no corre corre da vida sem a presença dele também te amo do jeito dela ❤️E eu sua madrinha que ficava de olhos bem aberto na sua direção sempre 💕Caracas Lu Deu até saudades dessa turminha aí que nós deixou pra um universo bem melhor que nosso aqui acredito eu 🤟 beijinhos 💋💋

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  3. Vai desculpando os erros e a falta de pontuação 🤩

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  4. Maravilhoso!!! Me trouxe muitas reflexões...

    Bianca Duqueviz

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  5. Adorei esse conto recheado de um cotidiano com o qual nos identificamos.

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  6. Gostei muito. Li tranquila aqui no sofá, depois de fazer aquele exame de colonoscopia. Graças a Deus está tudo bem. E inaugurei a tarde lendo esse precioso texto. Muito calminha, após ter tomado uma dose cavalar pré exame e dormir profundo.

    Maria Félix

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  7. Obrigada por me tornar protagonista deste belo texto. Entre atos, cenas o trabalho da coxia sempre rende aplausos. Vc é a mise-en-scène, pois as palavras não passam de cenários em movimentos e iluminados.
    Parabéns!

    Jandira Costa

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  8. Quase adiei a leitura por estar com muitos afazeres, mas resolvi dar espiada e não resisti. Lembrei com saudade de breves conversas que tivemos e entre elas, de uma que me marcou bastante quando falou da Paula, foi tão carinhosa em seus comentários que passei a gostar dela, alguém que nunca vi ocupa um cantinho no meu coração. 😍

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  9. Delícia de lembranças, reflexões mil surgem…vc sempre tão amorosa💕😘
    Cynthia

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  10. Esse texto ficou fenomenal!

    Marisa Reis

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