Antes que o mês me acabe

                                                                                                        "quis te odiar
                                                                                por ter devorado minha paz
                                                                                            por ter-se feito vício
                                                                                                    mas a sede sua
                                                                                me arma ainda tantas tocaias"
(Ângela Coradini)


O Dia dos Pais é estranho para mim. Não tenho memórias próprias do meu pai. Apenas recortes de lembranças alheias, recontadas, remexidas, requentadas e reinventadas, num telefone sem fio em eterno recomeço, repleto de sentimentos de terceiros atravessados na linha genealógica entre ele e eu.
Só entendi a paternidade a partir do pai dos meus filhos. É bonita. É robusta. E, como desconfiava desde sempre, deixa uma lacuna intransponível a quem não a teve por N motivos nesse caminhar caótico do deustisatino.


Manifesto
Azuis e amarelos não dão verde em agosto.
Aliás, agosto, que gosto tem?
De ausência, de falta, de carência paterna;
Tem cheiro imaginário de chuva e lama; do orvalho na superfície da folha.
Tem desejo de frutas cítricas suculentas para aplacar a aridez das artérias, o ressecamento da faringe, a (des) saliva.
Tem a experimentação de um planeta seco, a antevisão do apocalipse hídrico.
Gosto e desgosto de agosto. Mês candango bravio, arredio, afeito aos cactos e aos calangos.
Mês oitavo, infinito, de cantilena e do acalanto poético-explosivo dos ipês.


Floração
brancos
alvos
cândidos
rosas
esmaltadas
noivas
lilases
mimosos jacarandás
amarelos-
ouro
    [gema
áureos topázios
solares.


Tempo das mariposas
não chegou.
quando brota cigarra
da terra
fértil
telúrica
nova.



Todo oitavo mês do ano é a mesma ladainha: os candangos maldizem o tempo inclemente, a poeira, a baixíssima umidade do ar.
O estresse hídrico imposto aos seres viventes só é recompensado pela beleza dos ipês, que florescem como um grito de desespero pelas águas setembrinas.
Enquanto a primavera não vem, Brasília meio do contra, capital incompreendida, se transforma numa floricultura a céu aberto.
É o modo que a natureza da cidade tem para fazer seus moradores jamais se cansarem da espera.


Comentários

  1. Sempre👏👏👏vivas!!! palavras , conexões sempre bem vindas para nossa reflexão…como gosto de te ler!🙏😘
    Cynthia

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  2. Não gosto de agosto, sempre um mês corrido, cheio de imprevisto, meu inferno zodiacal, aliás da Family toda tirando Romeu. Estou pronta sempre pra florada de setembro. Por aqui também é cheio de Ipês, azaleias. Sinto por você a sua ausência, mas seu texto como sempre tocante e me envolve de muitos sentimentos e reflexões.

    Renata Assumpção

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  3. Textos sempre tão envolventes, Lu. Parabéns!

    Mônica Torreão

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  4. Li, seus textos sempre me tocam em algum ponto adormecido (para o bem e para o mal, rs), nunca passam batido. E a escolha da poesia epígrafe, desta vez, foi um vendaval.

    Ângela Sollberger

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  5. Eu tenho problemas com agostos.. mas este, Lu, foi de lascar... rsrs.

    Bianca Duqueviz

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  6. E com o salário que cai no último dia do mês - que não chega nunca. hahaha!

    Karla Liparizzi

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  7. Pai e mãe são necessários em iguais proporções. Cada um com as suas peculiaridades. Equilíbrio do universo.

    Rodrigo Holanda

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  8. Que lindo, muito lindo!

    Inês

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  9. Lindoooooo Lu!!!! To me sentindo assim! Não aguento mais essa seca!!!! Chuva pelo amor de Deus!!!!!
    Mil bjos da sua fã n.1
    Anna Gabis!

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  10. É sempre um prazer ler seus textos, amada! Muito lindo esse também.

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  11. Agosto levou papai e mamãe.
    Esperei setembro como quem brinca de amarelinha para ler 'Antes que o mês acabe'
    Lindo!

    Jandira Costa

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