Olho mágico




A vida e seus singelos presentes. Brasília, cidade na qual os vizinhos quase sempre são estranhos que cruzam nossos caminhos entre a garagem e a porta do apartamento. No máximo um bom-dia, um como vai. Seres esvaziados de sentido comunitário. Pessoas que não acrescentam nada em nossas apressadas existências. 

Mas por alguma obra fantástica do destino, eis que recebemos uma graça sem esforço, sem pagar promessa. E eu, que vivo querendo fazer roteiros de cinema da minha rotina, ganhei o argumento perfeito, daqueles de filmes saborosos e inspiradores: uma família queniana morando há poucos meses no sexto andar da nossa prumada. 

Ah, quem me dera tivesse o talento para contar essa história que vem se desenrolando em forma de quitutes. Uma intensa troca de gentilezas alimentares que surpreende a cada toque da campainha em horários pouco usuais. 

Primeiro foi o paizão, gigante negro com sorriso farto e voz de baixo. Jamal é o nome dele. Trouxe samosas ou mais corretamente “chamuças”: triângulos recheados de carne muito temperada tão perfeitos, mas tão perfeitos, que o meu caçula – após examinar com muita atenção aquela figura geométrica deliciosa – saiu-se com essa: 

- Existe algum tipo de cola alimentar, mamãe? 

- Cola alimentar? Capaz de até existir, filho. Mas por que você está perguntando isso? 

- A casca desse pastelzinho é tão grudadinha, não tem nenhuma falha. Só pode ser colado! 

Devolvemos a amabilidade com cuscuz de tapioca banhado em leite condensado. Desconfio que era o incentivo que precisavam para encarar essa disputa sem vencedores de quem é mais cordial e simpático. Minto: eles já venceram com folga. 

Vieram kebabs de peixe em forma de quibe com pimenta a valer. Devolvemos com um cuscuz amarelinho com queijo derretido no meio. E assim conhecemos o filho mais velho, outro negro magro de dois quilômetros de altura (que fermento eles comem no Quênia?). 

Rômulo já teve a sorte de ver a matriarca, mulher que certamente cozinha com amor. Levou o prato e passou quase uma hora em meio aos quenianos, que só falam em inglês. 

- Mamãe, eles me sequestraram! E ganhei um diamante negro! 

Todavia ontem foi o meu dia. O olho mágico pela primeira vez fez jus ao seu nome: uma deusa de ébano envolta em véu furta-cor batia à porta. Abri e nas mãos delicadas da jovem estavam os tais pasteizinhos irresistíveis. 

Porém, estava mais interessada nela, a figura exótica e magnífica postada à minha frente. 

- Would you like to come in? 

Ressabiada, a jovem aceitou o convite e sentou-se no sofá. A globalização dentro da minha sala de estar. Amina é o nome dela. E assim começou meu questionário ávido, coitada, perscrutando cada centímetro daquele lindo rosto tão distinto; daquela vestimenta tão cheia de vida, ao mesmo tempo em que carrega tantos significados sombrios para nós, ignorantes sobre O outro. 

Sim, são mulçumanos os nossos vizinhos do sexto andar. E eu não sei se eles estão nessa campanha de boas-vindas com os demais moradores do prédio ou se nos elegeram para mostrar que os seres humanos ainda têm conserto. 

Nas mãos de Amina um lindo desenho tatuado até o punho. Ela me explicou que havia sido feito pela irmã mais velha, “só treinando, não tem significado algum”. Falei que amava tatuagens e lhe mostrei as minhas, no que ela respondeu que os mulçumanos não podem se tatuar definitivamente, apenas com hena. 

O papo prosseguiu sobre os irmãos mais velhos da vizinha: o rapaz com degree em Law e a do meio com formação em Business. “Eles não querem ficar no Brasil para continuar os estudos. Acham a língua muito difícil de aprender”. Todavia ela, ainda no ensino médio, vai ficar com os pais por quatro anos em Brasília. Também me contou que quer ser médica e que está gostando da cidade. Ah, Amina, quem está gostando muito de tudo isso sou eu, sua linda! Vizinhos assim, na véspera de Natal, fazem a gente acreditar que o mundo é pequeno e adorável.

Não tive coragem de pedir para fotografá-la. Não sei se seria ofensivo aos olhos de Alá. O que sabemos deles é o que nos dizem os livros e os filmes. Nunca havia recebido uma autêntica muçulmana em casa! Xiita, sunita, particularidades culturais do país deles... Como será?

A anfitriã descabelada e de shortinho, papéis de presente que ainda faltavam embrulhar, espalhados pelo chão. Espero que não tenha se importado. Provavelmente não, somente me julgou exótica, numa recíproca verdadeira.

Ela se foi, suave e desconfiada como chegou. Ficou a fé inabalável na beleza da diversidade planetária.


Comentários

  1. Beleza de texto, Lu!
    Confio muito na interação, ainda que vivamos sob as asas frias da impessoalidade dos meios comunicação.
    Só não esqueçamos a máxima Aureliana , (acerca de nossa possibilidade de interação humana),“somos cidadãos do mundo”!

    Abraços!

    Reginaldo

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  2. Olá, Lú! Que saudade!
    Em dias de tanta coisa ruim, é muito legal receber um pouco de esperança...Obrigada!
    Tô aproveitando seu e-mail pra te mandar um beijo bem grande! Te desejar boas festas e que o ano que vem seja de mais esperanças e coisas maravilhosas!
    Um dia desses consigo te dar esse beijo ao vivo!
    Que Deus continue a abençoar a sua família!
    Feliz ano novo!!!!
    Vi que você só mandou abraços, mas adoro seus abreijos; então, pra você, Abreijos!!!
    Letitia

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  3. Lu!!!! MARAVILHOSO COMO SEMPRE!! IMAGINEI TODO O FILME!!!
    Vc tem muuuuuuuito talento! E o Natal sempre desperta esses bons sentimentos!!! Mil bjos e saudades......
    Gabi

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  4. Que lindo, Lu, e que experiência gratificante!

    É tão bom ter contato com outras culturas, etnias, descobrir outras facetas da glória de Deus na diversidade, lembrar-nos que todos temos riquezas a encontrar nos outros e compartilhar com os outros...

    Muito legal! Pelo que sei, os médio-orientais são, mesmo, conhecidos por sua hospitalidade e, para eles, fazer refeições juntos é sinal de aliança de paz.

    Será que dessa experiência surgirá um livro?

    Beijo!

    Gabriela Jennings

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  5. Olá, Lu!

    Eu conheci seus vizinhos no domingo que fiquei ai, muito simpático o pai das meninas com seu português enrolado querendo saber se eu morava no prédio. Em seguida, apareceu 3 meninas com véu na cabela e calça tipo pantalona... Muito sorridentes todos eles.

    Bjs,

    Leila.

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  6. Lindo texto e maravilhosa experiência !!!
    Que o preconceito dê lugar à tolerância, à reciprocidade e ao amor ao próximo, nesse novo ano que se inicia. Que Alá te abençoe !!!!
    Bjk,

    Luciana Reis

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  7. Ai Lú, que delicia de descobertas essas, primeiro com o carinho dessa família de vizinhos e depois sobre o mundo deles, tenho uma amiga egípcia muçulmana, que aprendo muito com ela em todos os aspectos, as comidinhas são uma delicia também.

    Renata Queiroz

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  8. Muito bom...que vizinhos incríveis, não só eles, mas vcs também, pois não é qualquer um que está aberto pra esse tipo de receptividade, muito legal essa interação...eles se
    sentindo acolhidos e vcs no acolhimento fraterno, humano na
    mais nobre versão de humanidade!
    Namastê!
    Cynthia

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  9. Amei o texto! Muito legal, oportunidade sem igual conhecer uma família assim.

    Bjs,

    Ana Claudia

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  10. Nada como ter vizinhos amáveis e pacificos, coisa difícil hoje em dia. Quando um árabe quer desejar o mal a alguém, diz " Alá te de um mau vizinho"..Não escolhemos vizinhos, nós ou eles caimos de paraquedas na vizinhança, e aí é contar mesmo com a sorte.

    Belo texto, Luciana.

    Severino

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