Alheamento




A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros



Vocação para o detalhe não carrego. A precisão me enfada. Por isso tudo que faço é meio capenga, falhas daqui e dali. Não tenho paciência para recontagem, revisões, reescritas. Geralmente vou deitando sobre o papel as ideias, deixo vir sem nenhuma autocrítica. Releio, sim, é claro, mas em modo pente grosso. Não é pente de catar piolho, pois buscar a perfeição nunca me motivou. 

Deve ser por isso que não sou boa cozinheira. Quem cozinha de verdade precisa de atenção. A meticulosidade de juntar as porções devidamente balanceadas. Vivo na gangorra para baixo e para cima, tirando os pés do chão e tocando de novo só para ser lançada mais alto na próxima investida. 

Também não sou exata com as palavras, vejam só, logo elas, meu objeto de trabalho e devoção. Meu marido se exaspera porque substituo qualquer substantivo comum por coisa, treco, aquilo lá... Ele espera de mim uma pessoa com certo nível de racionalidade, coitado. Só o que lhe entrego é uma viajante do tempo. 

Catarina, a colega, disse para o chefe: “a Lu sempre diz que tudo está sem graça e quer por uma corzinha. Quer transformar tudo em poesia”. Quero, sim, muito. Mas jornalismo não é poético, pelo contrário! É trator de esteira pisoteando a história com prazos apertados, quem, onde, quando, por quê? Portanto, quando respondo jornalista à pergunta profissão, me sinto impostora. Não sou isso nem aquilo. Nem publicitária, nem repórter. Vocação diluída no limbo. 

Espere. Não quero que vocês façam uma leitura errada de mim. Não há desorganização no meu 'avoamento". Apenas não gosto de ser tragada pelas picuinhas da rotina. Passei o fim de semana todo em aflição por imaginar que havia perdido a linda caneta que ganhei da amiga de Curitiba. A mesma amiga que se chocou ao saber que eu não tinha uma caneta legal na bolsa. Aliás, nunca tenho caneta, ponto. Mas cheguei ao trabalho e ela estava salva dentro do bolso do casaco que eu também havia esquecido sobre a cadeira. Que alegria! 

Deixo um rastro de objetos por onde passo... Sombrinhas, echarpes, sacolas, chaveiros, óculos, batons... Os penduricalhos que me compõem também são os mais dispensáveis. Sou uma pessoa dispensável, pronto. Mas meu armário, garanto, é bem arrumadinho. 

Não faço diferença em nada e em nenhum lugar. Eureka! Constatação que não deixa de ser libertadora. Minha mais valia pode ser facilmente substituída sem prejuízo para o bom andamento do processo. Gosto de me pensar como um “desutensílio” do querido Manoel de Barros. 

Daí a não vontade de ser mestra, especialista ou doutora em algo. De não provar nada para ninguém. Almejo ser tragada pelas canções, pela luz do sol e pelas narrativas da telinha. Tô quase adotando “deixa a vida me levar, vida leva eu” como mantra. Estou começando a perceber que não valho nada, que não tenho importância. Para quem se enxergava em alta conta, evolução. 


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