Peixe-Sapiens II





Paras as Clarices Lispector e Veras, 
que sabem: bichos bobos não são idiotas


Meu nome é Chico. Eu sou um peixe. Moro num tanque. Tá, vá lá, num laguinho quitinete. Um conjugado na frente de um viveiro de plantas. Dizem que sou uma carpa, o tipo de peixe que os japoneses reverenciam por representar a prosperidade e a alegria. Não entendo nada disso. Se eu fosse próspero, viveria no oceano Atlântico, nos fiordes gelados da Noruega ou no Rio Amazonas. Não nesse aquário, dividindo quarto e sala com tantos outros peixes, não acha? 

Ao contrário do que todos pensam, alguns peixes pensam. Espantado? Não sei se é o caso dos meus vizinhos que não param de passar para lá e para cá enquanto eu converso com você, esses mal-educados, mas eu afirmo que penso, logo existo. 

Demorou um bocado para as pessoas que vêm e vão daqui todos os dias (parecem meus vizinhos) perceberem que eu tinha consciência. Que era um ser vivo dotado de faculdades mentais diversas das plantas e das amebas. Normalmente eles paravam, olhavam, comentavam o tamanho de uns, a cor de outros, jogavam petiscos de cor e gosto indefinidos e iam embora. 

Mas num dia qualquer, um menino qualquer que eu nunca tinha visto parou, olhou o tamanho de uns, comentou a cor de outros, porém se demorou um pouco além do habitual dos humanos. Eu seguia entediado com aquela vida cercada por vizinhos que morriam pela boca, desesperançado de um dia ser muito mais do que uma carpa que representa prosperidade e alegria, imagina, logo eu, um peixe com consciência e, portanto, ranzinza. 

Quando me dei conta, o menino de cabelo amarelo estava apontando para mim. Ele contava para um humano graúdo, distraído e desinteressado: 

- Papai, aquele ali piscou, fez uma careta e soltou bolhas de chateação! Ele não quer ficar aqui, papai! 

Peraí, o menino tinha pescado minha body language! Ou eu já estava alucinando ou aquele menino, enfim, me surpreendia. Essa espécie terrestre e bípede pode ser inteligente, vejam só! Então saí do meu cantinho, sempre esbarrando nos debiloides dos meus vizinhos que não se cansam de ir e vir, ir e vir, ir e vir... Ai, fiquei tonto. Aproximei-me daquele dedinho que parecia uma minhoca gordinha e suculenta, mas reprimi meus instintos, afinal, não sou cabeça de bagre. 

Recostei na ponta daquele dedo com a minha cabeça. O menino sacou que podia me fisgar com aquela atenção. E daqui a pouco já estava recebendo um cafuné. Foi surreal. Aquele menino amarelo resgatou a minha confiança na humanidade. Tornamo-nos amigos e ele me batizou de Chico. Sei lá, até que gostei. Melhor do que ser reconhecido como carpa-coletiva é ter nome-indivíduo. 

Depois do menino, outros humanos pequenos e grandes passam pelo viveiro de plantas só para ver e crer que o tal Chico pensa, gosta de cafuné e vira a barriguinha para receber uns afagos. Já ouvi dizer que fui domesticado. Não entendo nada disso. Mas estou curtindo essa distinção toda, essa vida de celebridade. 

Meus vizinhos apatetados permanecem impassíveis e comilões. Tento cuidar da saúde, evito os excessos e conto bolhas para manter a mente ativa. Bem que merecia uma casa maior, banho de espuma, massagem. Tenho vaidades como todo ser pensante, mas por enquanto guardo para mim. Não quero assustar meus novos amigos.

E se você aí está pensando que isso é história de pescador, vem me conhecer no último viveiro de plantas a caminho de Sobradinho. Mais não digo porque não entendo nada disso.


Para quem quiser assistir ao Peixe-Sapiens original:

https://www.youtube.com/watch?v=8QW4r1YRKn8


Comentários

  1. Texto muito bom, como sempre! Valeu, Xará! Nome adequadíssimo!

    Luciano

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  2. Uma leitura leve e inteligente assim é sempre uma colação para a alma. Nutricionistas, nutrólogos, educadores e o povo da saúde deveriam recomendar...

    Luciano

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  3. Adorei...me diverti muito, bj.

    Cynthia

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  4. Nada como um bom texto para tornar ainda mais interessante uma notícia. Parabéns.

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  5. Muito legal seu blog. Depois vou ler com calma.

    Sebastião do Espírito Santo

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  6. Adorei a história desse peixinho Lu, gosto da forma que vc escreve sempre ,Ja queria adota-lo🥰

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  7. Ameiiii! E achei mesmo a cara do FranChico!

    Marilena Holanda

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