Pé de pato, mangalô, três vezes

“bailam corujas, pirilampos,
entre os sacis e as fadas
e lá no fundo azul na noite da floresta,
a lua iluminou a dança, a roda, a festa..”

João Ricardo e Luli

Via o prazo final para o envio do texto se esgotar e continuava no vácuo criativo. Escrever sobre o quê? Se pelo menos eu fosse uma versão feminina do Veríssimo e soubesse imprimir humor e reflexão nos assuntos mais sem graça, estaria salva. Aí, de repente, abro minha caixa de mensagens e encontro um recado da amiga paulistana: “Halloween é o cacete/Viva a cultura nacional”. Pronto, num passe de mágica típico das fadas, o tema se apresentou.

Primeiro levei um pequeno susto, afinal esta minha cara companheira de estrada é das pessoas mais finas que eu conheço. Eu acho que nunca a vi xingando ninguém. Mas também sei o quanto ela é brava com a história do halloween. Ela vive promovendo o Dia do Saci e uma das óperas favoritas dela é, claro, “O Guarani”, do nosso Carlos Gomes. Mas brigar contra o Dia das Bruxas não é uma briga vã?

Acredito que sim, pois valorizar o nosso folclore não exclui o fato de que fantasmas, bruxas, monstros, vampiros, lobisomens e outros seres macabros e assustadores fazem parte do inconsciente coletivo mundial. Não se trata de americanismo. Não foram eles que inventaram os vampiros e nem o lobo-mau. Os europeus saíram na frente. Portanto, tenho total convicção que as duas correntes : as lendas brasileiras e as arquetípicas histórias sobrenaturais importadas podem coexistir pacificamente, pois elas nada tem a ver uma com a outra. Não há canibalismo e sim pluralidade.

Síndrome de colonizado a gente tem, é verdade. É só dar uma rápida olhada nas fachadas dos prédios, ou melhor, buildings, com seus escritórios, ou seriam offices? E as nossas lojas e suas sales e seus 30 % offs. . O inglês está por toda a parte e acho realmente patético chamar o trinta e um de outubro do dia do halloween. Bruxas existem em todas as nacionalidades. Não são um privilégio ou sortilégio norte-americano, graças a Deus (ou seria ao demo?).

Por isso não vejo mal algum em celebrar o lado obscuro da vida. Uma das facetas mais divertidas de ter dois meninos em casa é essa: eles amam os bichos gosmentos como aranhas, cobras, lesmas, moscas (blerg, o meu mais velho tem uma de borracha, acreditem). Eles querem ser o monstro X, a caveira Y e eu me amarro. Sempre adorei histórias de detetive e de suspense. Não perco um bom filme de terror B, além de apreciar sobremaneira um terror psicológico. Acho o Conde Drácula sexy, adoro bruxarias e feitiços. Faço figa, mas nunca encarei uma macumbinha básica.

Quando vivi em Nova York pude perceber que o mês de outubro é o mais descolado naquela cidade. Todos entram no espírito de exorcizar demônios e enfeitam os jardins das casas, as lojas...Toda Manhattan e adjacências se transformam em um imenso trem-fantasma a céu aberto. E no dia 31, quando a parada acontece, é um espetáculo imperdível, a galera toda fantasiada das mais variadas maluquices macabras. O momento em que os americanos são mais irreverentes e abandonam o puritanismo que cerca o way of life ianque.

Não estou sugerindo que a gente faça parada do Dia das Bruxas, mas querer afastar as crianças da atração fascinante que são estes entes que povoam a nossa imaginação desde que o mundo é mundo não tem sentido e não vai colar. Na minha opinião, o melhor a fazer é investir no Dia do Folclore, comemorado em 22 de agosto.

Nesta data, ou mesmo ao longo da semana, aproveitar para apresentar às crianças a gama e beleza dos contos folclóricos brasileiros. A escola do Tomás, que é pública e não perde tempo e dinheiro com nenhuma febre ou moda, fez isso de maneira exemplar. Meu filho voltava pra casa contando as peripécias do saci, do boitatá, do curupira...Ele tem um saci de pano em casa e eu aproveitei o ensejo para contar histórias do meu livro chamado Lendas Brasileiras.

Eu garanto: ele nunca vai se esquecer dos nossos entes sobrenaturais. Mas também não vai deixar de gostar de esqueletos por causa disso. Ontem mesmo ele passou o dia todo vestido com uma roupa preta que simulava um. Por isso, é muita forcação de barra batizar o dia 31/10 como o Dia do Saci como se ele, um moleque travesso que só existe aqui no Brasil, pudesse competir com toda a legião de seres fantasmagóricos que habitam o planeta. Pô minha gente, é até desleal. Uma competição que a gente sabe quem vai perder.

Vamos celebrar o nosso folclore no dia dele e deixemos as bruxas no dia delas. Assim ninguém briga e a gente ainda ganha mais motivos para fazer festas e soltar as amarras. Lembremo-nos que o cérebro e o coração não têm limites. Sempre cabe mais uma boa história e uma alucinada fantasia para incorporar.

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