“Onde há escola, há esperança”*

O Brasil é mesmo um país surreal, ou como definiu Luís Fernando Veríssimo em várias de suas crônicas sobre os problemas brasileiros anacrônicos, um país “além da imaginação”. Viver num lugar que supera nossa capacidade de compreensão não é mole. Meu coração está na garganta desde a manhã de hoje, quando fui prestigiar a festinha de encerramento da escola do meu filho mais velho.

Não é novidade para os que acompanham esta coluna que Tomás frequenta o Jardim de Infância da 303 Sul, ou seja, ele estuda na rede pública de ensino. Não foi uma decisão fácil apostar nosso tesouro, o bem maior de todo pai e mãe, e matricular nosso pimpolho de cérebro aberto para o mundo numa “escola do governo”. Agora, ao final deste primeiro ano, não poderíamos estar mais satisfeitos e orgulhosos de nossa escolha.

Os preconceitos que envolvem a escola pública são tantos que a família de classe média não consegue enxergar o que acontece na ponta do nariz. Nem pára para olhar da janela do apartamento o que rola no estabelecimento que fervilha há 20 metros de distância. Há um muro de incompreensão, de frases prontas, de mediocridade, de egoísmo separando pais e crianças da possibilidade de vivenciar a utopia de Brasília: morar e estudar na mesma quadra.

A comodidade, a proximidade, a intimidade de compartilhar de perto com a construção da cidadania e da educação do seu filho não tem preço. E não tem mesmo, pois é de graça. Entretanto, a maior parte dos pais e responsáveis ignoram o privilégio e preferem gastar muito dinheiro em maternais e jardins nos quais, eu posso afirmar sem medo de errar, a qualidade e o comprometimento dos mestres está muito aquém do que a gente recebe nos Jardins de Infância da rede pública.

Mas não pretendo catequizar ninguém ou convencer a classe média a se comprometer com a valorização da escola pública e com a sua melhoria contínua. Quem sou eu sozinha contra este paredão de esteriótipos mantido a ferro e fogo pela própria classe média, pela própria mídia que prefere noticiar todas as merdas que acontecem na rede pública? Eu mesma, utilizando meus contatos como jornalista, tentei sensibilizar colegas da TV e de jornais da cidade para a elaboração de uma matéria de grande importância sobre o tema e nada consegui.

Educação não dá ibope. A não ser que seja a má-educação. Aquele que levou uma arma e matou ou feriu dentro da sala-de-aula. O outro que espancou o colega. Aquela que agrediu a professora com pedradas. A nossa imprensa adora noticiar o mau-feito. E jogar pedra na educação pública é um dos motes preferidos da classe média, a mesma que se tranca em condomínios e acha que viver com medo do pobre ao lado é vida de gente.

Pois é, os jornais e tevês de Brasília não quiseram publicar a ótima estrutura oferecida pelos jardins da infância no Plano Piloto. E alta qualificação dos professores, que têm uma ou mais graduações e dedicação exclusiva para preparar com competência e carinho as atividades curriculares. A professora do meu filho, por exemplo, é formada em Pedagogia e Nutrição. Com responsabilidade, desenvolveu um projeto, durante todo o ano, de alimentação saudável com as crianças. Uma maravilha que passa ao largo de qualquer noticiário.

A ignorância dos pais de classe média acerca da escola ao lado é tão impressionante que eu já ouvi gente admirada afirmando: “mas eu pensei que não podia colocar meu filho nestas escolas”. Quer dizer, a rede pública é para pobre, não para os bem nascidos. Nada poderia ser mais corrosivo para o futuro de um país do que deixar a educação pública de qualidade ser repudiada pelos que podem, com o poder do dinheiro e do discernimento, fazer as regras do jogo mudarem para melhor.

Quatro dos meus cinco irmãos completaram seus estudos nas escolas públicas de Brasília e hoje estão bem empregados. Vocês vão dizer: naquele tempo a escola era outra coisa. Sim, era, mas quem foi que deixou a rede pública de ensino cair na marginalidade? Nós mesmos, os que têm o poder da escolha. Minha madrinha é minha madrinha porque meu pai a conheceu dando aulas para os meus irmãos. Uma mulher digna, inteligente, honesta, altiva, professora firme e dedicada. No Jardim de Infância da 303 Sul encontrei toda uma equipe como ela.

Todavia, ouvimos da diretora da escola que não houve procura pelo telematrícula e o Jardim de Infância da 303 sul corre o risco de fechar as portas. Vivemos ou não num país surreal? Uma escola com infra-estrutura tinindo de nova (tem até piscina); professores habilitados e comprometidos, decente, ética comunitária e gratuita, ao lado da sua casa, pode fechar porque não há pais interessados em matricular seus filhos nela. Se a gente contasse isso para um europeu o que ele pensaria dos brasileiros? Doideira total.

E assim como a escola da minha quadra, todas as outras do Plano Piloto estão à espera da redenção. O governo fez um pouco da parte dele: reformou; entregou para a sociedade espaços revitalizados e cheios de esperança. Agora precisamos fazer a nossa. Sem a classe média na escola pública, não há como o ensino voltar a ser de excelência como foi em todas as séries. E sem escola pública de qualidade contínua e duradoura, o país vai permanecer em sua eterna trajetória pendular entre os poucos com tudo e os muito com nada.

Obrigada, Jardim de Infância da 303 sul! O trabalho sério dos professores mostrou que é possível construir o país que eu gostaria de deixar para os meus filhos.

* Frase do fotógrafo Sebastião Salgado no prólogo de seu livro de retratos das crianças do êxodo.


Comentários

  1. Prima vc é Show! Parabéns!

    Monise

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  2. Devorei suas bens escritas linhas de esperança antigas mas tão presente, "falou" diretamente ao meu sonho do direito como cidadã inhumense brasileira por uma escola pública "de graça" que tenha qualidade e comprometimento com seus alunos . Se procuramos pode sim estar ao lado do muro da nossa casa. Eu olhei....e achei. Obrigada.

    Simone

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