Lista de saudades (uma prévia)

Meio por acaso eles se pegaram naquela conversa. Uma espécie de saudosismo prematuro, antecipando o inevitável: memórias. Elas virão. Impiedosamente. E com elas o tom sépia, a melancolia, aquela dorzinha aguda no peito. Ninguém passa um tempo longe do país natal incólume. E, se no presente a gente não apreende o quanto já se transformou, no futuro bem próximo essa mudança vai ficar mais clara.

“Nós vamos sentir falta de algumas coisas que, no momento, são imperceptíveis. Mas, à distância, elas vão aparecer”. Foi mais ou menos o que ele me disse naquele almoço no restaurante tailandês. Ao lado, duas mulheres falavam francês; na mesa à frente conversavam uns indianos. Sim, disso eu já sei que vou me matar de saudades. A lembrança da diversidade de rostos, línguas, costumes e comidas vai me comover. A babel deliciosa...

Se fizéssemos ele e eu uma lista de o “o que terei saudades quando deixar New York e voltar para o Brasil” pontos de vista, observações e necessidades diferentes iriam aparecer num mosaico intrigante. Poderia tentar adivinhar o que faria Bernardo soltar uma lágrima escondida. As idas e vindas do trabalho cruzando meia hora de belas highways seguras, tranqüilas, ladeadas de densa mata, onde ele, o físico, podia matutar suas equações? As estações de música clássica de alta qualidade rolando no rádio? O ambiente fecundo e inteligente do centro de pesquisa onde ele passou suas semanas? A vista deslumbrante da biblioteca do prédio da IBM?

Outuno em Nova Iorque

Já os prazeres desfrutados em comum serão lembrados em conjunto. Museus inacreditáveis...Os americanos não entendem nada de comida, mas criam museus como ninguém. Eles sacam tudo de espaços criativos, interativos, organizados e repletos de informações cativantes.

As óperas e os balés apresentados nas temporadas do Lincoln Center. Naquelas salas magníficas e seus lustres hipnotizantes. Civilidade, humanidade, profissionalismo e bom-gosto reunidos num só complexo cultural. Unforgetable.

Temporada de ópera

Claudia e Martin e nossos encontros sempre divertidos, espirituosos. Grandes companheiros que nos brindaram com suas histórias de vida vindas da Áustria, um país tão improvável para a gente como o nosso é para eles. Espero revê-los um dia em Munique, onde Martin vai ocupar a vaga de Professor, com p maiúsculo porque é assim que a Alemanha trata seus mestres.

Será que vamos sentir falta até dos hot dogs americanos? Jura? Não posso crer que vou encher a boca d’água ao lembrar do melhor cachorro-quente dos EUA. A gente sentava na grama e saboreava aquela salsicha realmente gostosa a 500 metros do nosso apê, no Walter’s.

Na minha lista de saudades não faltaria a Agnes tomando café no Starbucks. Sentadinha lá, com os pés cruzados sobre a poltrona de veludo bordô. As unhas pintadas de vinho, alguns anéis nos dedos brancos, superbrancos. Nossos papos num inglês suado, difícil. Uma polonesa e uma brasileira a jogar conversa fora pra espantar o frio. Coisas de Manhattan.

Vista da Big Apple da cobertura do Metropolitan Museum of Art

As aulas de Healthy Back na YMCA com a teacher Pauline ordenando: squeeze! Squeeze!!!! não vão abandonar meu baú de lembranças. E outra memória indispensável: a Grand Central Station. A sublime e majestosa estação de trens que me abria as portas da Big Apple. Num dado momento ela se tornou tão rotineira que quase me esqueci de venerar sua beleza vitoriana. Oh, a grandiosidade da Grand Central vai me fazer falta!

A dorzinha aguda no tom sépia vai bater quando me lembrar do outono em Nova York e de que aqui vivi as quatro estações do ano como estudava nos livros de ciências do ginásio. Vai dar vontade de gritar em abril: cadê as folhas laranjas, amarelas, ocres, vermelhas? Cadê os cemitérios abandonados cobertos de serragem vanghgoguiana?

E as crianças vestidas para enfrentar o inverno...Touquinhas, cachecóis, luvinhas...Pedacinhos de gente tentando um equilíbrio difícil dentro de quilos de casacos e botas.

Patinar na pista de gelo do Central Park vigiando os prédios iluminados da Quinta e Sexta Avenidas. Sentir-se como aquela personagem de um filme que você já vil mil vezes. Rir sozinha com o fato de estar passeando ao vivo, em cores e diariamente pelos cenários cinematográficos que construíram e ainda constroem o inconsciente coletivo ocidental.

Pegar uma balsa e passar displicentemente em frente à Estátua da Liberdade enquanto aquela tomada de câmera batida, manjada e nem por isso menos embasbacante do horizonte verticalizado de Manhattan inunda nossas retinas.

Tomar um vento na cara na Ponte do Brooklyn, meu canto preferido em NY. Ver os carros zunindo debaixo dos meus pés. Curtir o céu aberto com o mar também aberto para lá e para cá. O cartão postal que ainda não foi muito explorado pelos turistas que preferem a Times Square.

Magnífica Ponte do Brooklyn
 Também não posso fingir que não sentirei falta das minhas tardes solitárias regadas a filmes da TV a cabo. Existe melhor desculpa para devorar caixas de chocolate (suíços e belgas) e sorvetes (americanos, pois eles também sabem fazer sorvetes)? E os papos virtuais com a Lumi... Pessoalmente, já em Brasília, teremos a mesma eloqüência, o mesmo frescor?

Quando voltarmos, saberei. E lembraremos dessas e de outras coisas que estão agora desapercebidas. Porque a memória é danada se não é amarga. E aí a gente guarda no peito só que a gente viveu de bom.

Comentários

  1. É exatamente esse tipo de coisa que vai me fazer falta quando eu voltar pro Brasil.

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