Inverno

Só ouvindo Vivaldi com seus violinos desenhando espirais n"as "Quatro Estações". Talvez apenas ele, Vivaldi, com sua música sem grandes pretensões, sua melodia "fácil", capaz de fazer coração sair pela boca como tudo o que é ridículo (todas as cartas de amor são ridículas e, por isso, Pessoa sabia, são mais singelas e inesquecíveis).

Só ouvindo eu possa escrever sobre as primeiras quatro estações da minha vida? Acerca da neve que cai sobre as cercas lá fora. Agora espessa, firme, implacável. O inverno é lindo com sua dilacerante mansidão. Nunca pensei que a neve fosse me embevecer, me tornar tão leve. Me inspirar. O outono é dança das cores-terra. Todavia, o inverno é o silêncio perfeito. Chego a me esquecer - e que paz de espírito é essa que me toma - de que o mundo é torto e que olho pro presente e choro.

Inverno no estado de NY

Apaziguada num conforto de luva neste inverno inacreditavelmente belo. Agora entendo o nome da cidade ao lado: White Plains. Plain é enxuto. Sem adornos. Livre de qualquer excesso. Minimalista. Plano. Planície. Nu. Por momentos inteiros já nem me lembro que existem contornos inexplicáveis no mundo. Que uma criança pede no semáforo, vende jujubas sem chinelos. E que este detalhe grosseiro faz parte da pintura hiperbólica, esdrúxula do que chamamos vida real. 

Por alguns momentos, horas, dias, esta paisagem dilacerante de miséria é somente um pesadelo bobo - que alívio para as mentes que gostam de olhar para o presente e chorar. Porque apenas estou imersa nesta beleza branca. Tudo é paisagem irretocável. A neve deixando sua cobertura de chantilly , escondendo a imperfeição humana.

Nunca um espetáculo da natureza me comoveu tanto. Ou sim? Sim, me lembro agora que meu coração experimentou tal sentimento paradisíaco ao ver o mar pela primeira vez ao sete anos de idade. E também naquele dia em que Bruno, sobrinho sensível e intrigante em seus dois anos e meio, descobriu o que era um hipopótamo saindo d'água no zoológico de Brasília. A baba estupefata escorrendo de sua boquinha aberta ... Seus olhos acesos. O afilhado Dani constatando que a areia foge dos pés quando é lambida pelas ondas do mar. O medo, a excitação e a curiosidade de um garoto de três anos que olha pro oceano e não entende como tanta água pode estar disponível, à mercê de suas brincadeiras.

Ou ainda o raio que me paralisou na frente do abismo do Grand Canyon. São raros os momentos perfeitos da nossa existência. Porque a natureza é sutil e constante. Absurdamente constante que a gente se esquece de que Ela é o que existe de mais fascinante. As pinturas do Metropolitan Museum of Art, as esculturas de Rodin, Vang Goghs, Picassos, impressionistas, cubistas, abstratos, modernos ou pós qualquer coisa. São obras de homens. Vasos do antigo Egito e pirâmides e Vênus de Milos no Museu do Louvre em Paris. Paris, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Brasília. São obras dos homens. Esgotam-se em si mesmas. Amadas e odiadas, as obras dos homens nos cansam.

Por do Sol no Grand Canyon

Estes desvarios me assaltaram ontem ao visitar o Museu Americano de História Natural pela terceira vez. Todos aqueles esqueletos e as explicações da origem da vida. Tiranossauros, mamutes e mamíferos da África. A vida oceânica, os vulcões capazes de mudar a temperatura da Terra. Big-Bangs e os primeiros crocodilos. As obras naturais nunca se esgotam em si mesmas. Não sei se pode haver um ser bípede e inteligente que se canse de admirar tudo o que esta tal natureza criou e cria o tempo todo. Que entidade, que mistério é esse detentor de criatividade inesgotável? Perene e adaptativa, (re)evolucionária e irreverente natureza. Merece minha reverência maior. Muito mais cativante que a mais cativante obra do mais cativante dos homens.

Fazendo anjinho

E assim me deitei na neve. Deixei seus flocos desiguais caírem sobre meu rosto. A chuva vindo na diagonal. A alegria da criança que ganha sua primeira bicicleta. Pisar no branco e ver o branco engolir seus sapatos. O som da neve é um som surdo. O som dos surdos. De Beethoven imaginando a melodia da Nona Sinfonia. O branco tomando os galhos das árvores. Criando montinhos aqui e acolá. Montinhos branquinhos. Êxtase. Plenitude. Vivaldi.

Comentários

  1. Caraca!! que pusta texto fodíssimo! E as fotos estão sim muito muito boas, oras senão!!

    O Arquiteto do Universo escreve por linhas tortas, desenha em cadernos caligráficos. A criação divina, o milagre da vida e o planeta Terra são as coisas que deveriam nos assombrar todas as manhãs. E não o aluguel e a conta da lavanderia!!

    :-D

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos