Baião de dois

Viviam há três meses na mesma casa. Ela, publicitária. Ele, físico. Era um apartamento desses antigos: quarto, sala, banheiro e cozinha, que no inverno permaneciam mais frios e, no verão, obviamente mais quentes.

Cada objeto havia sido comprado com carinho. Muitos foram presentes. Uma toalha de mesa, algumas plantinhas, jogo de panelas... O par encontrara um belo armário numa dessas feiras de antigüidades de São Paulo. Gostou. Levou. E assim foi-se compondo os espaços do apartamento 1006.

Não tinham dinheiro. Ele, pesquisador de universidade. Ela, recém-formada. Porém, maiores problemas não os afetavam. Ele, com seus dilemas quânticos. Ela, com sua mania de escrever poesias.

Curtiam aquela vida diferente. Ela, desempregada. Ele, romântico. Aproveitavam os programas gratuitos no Parque do Ibirapuera. Mas pagavam, quando a grana dava, um bom cineminha. Ela, meio cult. Ele, completamente intelectual.

Um acordo tácito dividiu as tarefas domésticas. Ele sofria de asma. Ela, de alergia a máquinas. O apê, contudo, era bem limpo. Ele lavava as roupas e consertava pequenos defeitos. Ela varria o chão e limpava o banheiro.

E as semanas se somavam... Ela, respondendo às cartas das amigas. Ele, resolvendo listas de exercícios. Assim, a vida foi sendo aos poucos construída: ele, pagando as contas; ela, roendo as unhas.

Numa manhã de julho ele a chamou de um modo estranho:

- Sô, venha aqui ver uma coisa.

Ela saiu da cama e se encostou na porta do banheiro:

- Sim?

- Olhe o vaso, Sô.

- Uma pena.

- Sim Sô, uma pena. Como é que uma pena de pombo veio parar no meu vaso sanitário?

- Sei lá, Jonas. Você tem cada idéia!

E os dias correram. Ela, procurando emprego. Ele, fazendo almoço.

- Sô, não é possível! Outra pena no vaso.

Ela, que varria o chão neste momento, sorriu em silêncio. Ele sentou-se à mesa desolado. Alguns minutos se passaram e ela começou a perceber um brilho característico em seus olhos.

- Ei, o que foi Jonas? Descobriu o mais novo paradigma da Física Moderna?

- Quase. Desvendei o mistério da pena no vaso. No mesmo momento, ele olhou para baixo fazendo sinal em direção à almofada sobre a qual estava sentado.

- Essa almofadinha que sua mãe fez com penas de ganso. É ela que está causando o problema. A gente senta aqui e fica com a pena presa no traseiro. Vai ao banheiro e a pena cai.

- Uma boa teoria, meu caro Jonas, mas muito complicada.

Mal acabou de falar, Sofia explodiu em sonora gargalhada, derrubando a vassoura.

- Então foi você, sua sacana! Você jogava as penas no vaso e me deixou quebrando a cabeça com esta história!

- E como eu ia saber que você estava perdendo tempo com isso?

Mas ela devia saber. Ele era dessas pessoas que pensavam o que ninguém mais pensava. E assim continuaram vivendo entre pratos e lençóis.

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