A ponta do iceberg

milhares de anos antes da existência da América
o Egito já chegara à maturidade”

Ahdaf Soueif

Estou quase terminado um romance muito interessante: O Mapa do Amor, da escritora egípcia Ahdaf Soueif. Quando chegar à última página, terei a certeza de que não é o melhor livro que já li, mas ressuscitou, dentro de mim, a antropóloga que gostaria de ter sido.

Com uma narrativa delicada, embrenhada de fatos sociais e históricos para mim desconhecidos sobre o mitológico Egito, o livro resgatou o conceito de relativismo cultural que estava ligeiramente empoeirado, coitado, pelo excesso de informação globalizada da mídia.

Globalizada, uma ova! Lendo este livro me peguei matutando: serão mesmo as mulheres árabes umas pobres coitadas massacradas, violentadas em suas liberdades, seres inferiores para seus homens? Antes que me tachem de simpatizante do nazismo e de outras ideologias hediondas, informo que sou contra qualquer tipo de tortura, degradação e aniquilamento da espécie humana, sem preconceitos de gênero, para falar antropologuês rasgado.

O Mapa do Amor reacendeu uma questão óbvia e ululante: nossas fontes de informação e diversão são tão ocidentalizadas, tão pró-Israel, ou seja, tão norte-americanas, que fica difícil acreditar neste estereótipo do mundo-árabe-cão, que esse povo milenar é uma aberração social, os tais bad guys, bárbaros barbudos. Sei não... Eu conheço um sírio típico que é uma pessoa maravilhosa. Trata as mulheres com deferência e hombridade que faltam em muitos machistas brasileiros. Ele aprendeu a respeitar as mulheres aqui? Creio que não.

Ao conhecer a ponta do iceberg da vida egípcia nos primórdios do século XX, sinto que estamos sendo catequizados, doutrinados a desprezar uma cultura, língua e gastronomia de nuances e texturas fantásticas. Os árabes e mesmo o Islamismo não podem ser só escuridão. Nada é assim. Até a Natureza, a mais primitiva das forças, alterna delicadeza e fúria, dia e noite.

Por meio da suave escrita de Ahdaf Soueif, percebo que há alegria, satisfação, dignidade e orgulho nas mulheres que ela retrata. Não consigo vislumbrar traços de revolta ou angústia. E também não acredito que a escritora esteja dourando a pílula. Ela vive na Inglaterra e – creio eu – não teria pudores em denunciar a repressão feminina em seu país.

Claro que existem excessos e ignorâncias. Não devemos ser tolerantes com práticas que condenam mulheres a morrerem apedrejadas ou a sofrerem mutilações em seus órgãos genitais. Isso é trevas. Mas trevas é o lugar em que a lei do mais forte impera, seja aqui ou na Papua Nova Guiné.

O mais importante é relembrar a lição ofertada aos calouros de Antropologia: relativizar. Ajustar o olhar para compreender antes de opinar. O desconhecimento nos causa temor. E o temor acaba sendo pai e mãe de atrocidades no oriente e no ocidente, sem distinção de credo, raça ou nacionalidade. Isso sim é uma realidade tristemente democrática.

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