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Mostrando postagens de março, 2015

Tocata e Fuga*

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Toda dia de curso eu passo por ela, que se esconde no canto atrás da pilastra do suntuoso edifício. Não sei precisar o rosto ou a idade, concentro-me na cotidianidade da imagem.  Toda vez a fumaça; o dedo a boca, que franze para sorver o vício: tragar mais de quatro mil produtos tóxicos que causam dependência emocional e física, quiçá câncer e enfisema pulmonar.  Passo por ela no frescor, leveza e perfume da manhã que recomeça. O céu é límpido, claro e puro até o momento no qual me aproximo daquela nuvem branca acinzentada. Chaminé nublando o horizonte.  Ela é solitária nesse hábito. Sempre pensativa e recostada na pilastra a baforar suas reflexões ao ar livre. Livre é uma palavra estranha nesse contexto...  Não sei se ela me nota, pois são muitos os transeuntes. Não sei se lanço para ela um ar de reprovação. Não se ela sente o possível incômodo que me causa. Mas, porque será que eu a julgo, deus do céu? Porque concluo: ela é fraca, entregue a uma escolha doent

Para agradar aos gregos

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Minhas leituras de banheiro são mais densas do que as leituras de cabeceira. Não posso correr o risco de ferir de morte um sono tão temperamental, dado a achaques e estrelismos. Só quem atravessa a madrugada pedindo perdão a Morfeu, aprende que carece ser cauteloso sobre quem se leva para cama.  No banheiro, o ambiente é livre de subterfúgios. É você diante do espelho impassível. É você num santuário de focos de luz e pensamentos voláteis. O momento limite de solidão e da mecanicidade das necessidades básicas da vida. Básica também é a cor dos revestimentos; assépticos para limpar corpo e mente, tornando a viagem por arredias e intrincadas histórias mais deleitosa.  Ler Guimarães Rosa e Clarice Lispector é preciso. Mas não na alcova, caso você tenha clarões e vertigens e lágrimas diante do estupefato texto em suas mãos. Refletir sentado é mais apropriado do que deitado, entenda você. “O Pensador” de Rodin eternizou a melhor posição corporal para matutar. Eureca! Se os

40 tons de realidade

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Acho que estou começando a sacar essa história de “a vida começa aos 40”; “Aos 40 a mulher está no auge das suas potencialidades”, clichês, clichês, tal e coisa, coisa e tal. O fato é que nunca trabalhei tanto como agora. Estou no auge, sem dúvida, do cansaço.  Aos 20, 30, reclamava de me sentir subaproveitada no ambiente de trabalho. Logo naquele tempo, quando continha toda a energia da juventude à disposição das chefias e do país. Agora, com o dobro da idade, tenho o dobro da responsabilidade, editando dois veículos de comunicação: uma página quinzenal e um mural semanal. Virei uma fábrica de textos ambulante com a metade da disposição mental que já experimentei.  Quem dera ter acreditado que a vida, pelo menos a profissional, começa aos 40... Teria aproveitado para ter filhos aos 20. Tudo certo, equilibrado. Agora, não adianta chorar sobre o acúmulo de funções derramadas na minha frente.  Você que me lê, sente um sono mortal às cinco da tarde? Eu sinto. A gine

Kitsune

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Em outra esfera, tempos e tempos atrás, um rapaz sussurrou ao irmão: “Aquela menina tem cara de raposa!”. A menina, astuta e observadora, leu a mensagem no movimento dos lábios do jovem que lhe pareceu uns cinco anos mais velho, ou seja, muito velho para uma menina de 14.  As férias nas praias baianas se acabaram, o flerte febril da adolescência também, mas aquela intrigante comparação nunca abandonou a memória da menina, que jamais descobriu ao certo: fora elogio ou fora destrato?  De todo modo, a cada dia, a menina assumia a feição voluptuosa do gênero Vulpes vulpes: porte médio, focinho comprido e uma cauda-cabeleira longa e peluda-farta nos tons mel avermelhados da espécie, além de orelhas de abano eretas e sensíveis aos variados tons e semitons.  As pupilas ovais, semelhantes às pupilas verticais dos felídeos, tornou-se um dos traços físicos mais marcantes da menina, que constantemente era chamada de gata ou onça, tailandesa ou árabe, talvez.  Curioso é qu

O deslize de Eva

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Ao cair da noite no Dia Internacional das Mulheres, penso sobre as mulheres de verdade. Aquelas para as quais a data foi forjada. Estamos no século 21 e as manchetes dos jornais deste domingo ainda debruçam suas letras sobre estereótipos: as mulheres poderosas da moda; as divas da música; as poucas presidentes no mundo; as raras CEOs de empresas globais.  Tanto a caminhar, portanto. Reproduzir discursos prontos é menos trabalhoso e dolorido do que refletir. Teria sido bacana manchetes sobre mulheres que a gente encontra e convive todos os dias. Mulheres que vemos quando nos olhamos no espelho. Mulheres que se equilibram sobre o surrealismo das múltiplas personalidades: um pouco de realização profissional; um pouco de tesão; um pouco de alegria; um bocado de angústia em relação ao futuro dos filhos; outro tanto de tédio com a rotina do casamento, sempre mais sacrificante para ela; uma serena tristeza pela velhice que se aproxima; uma discreta esperança que a vida mude... 

Adamantinas

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A família no fusca parou no semáforo. E o tempo parou para, em seguida, retroceder uns 40 anos. Havia um pai ao volante, a mãe e duas crianças no banco de trás. De uma delas só se vislumbrava os olhos e o topo da cabeça. Era ela, no fusca da mãe, a caçula, a transitar pelas avenidas ainda desertas de Brasília.  Carrapicho. Estava sempre na barra da saia da mãe ocupada com tantos afazeres. Adorava quando podia sair de fusca pela cidade. A W3 Sul imponente com suas fachadas coloridas: Fofi, BIBABÔ, Casa Nordeste, Casas Pernambucanas, Pioneira da Borracha... Aprendeu a ler rememorando aqueles letreiros.  A família no fusca era de um anacronismo doce ao lado dela. A mãe semelhante à personagem da mãe da Mafalda, com cabelos crespos volumosos e arredondados. Perfil sério olhando para frente. A maior, encostada do lado esquerdo, parecia entediada como são os pré-adolescentes.  A menorzinha vagava olhos curiosos para o carro ao lado e foi quando se estabeleceu o conta