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Mostrando postagens de março, 2012

A última companheira

A manhã é confusa, mas ela nem toma conhecimento. Despertador, cara amassada de sono, atrasada para variar. Sair de casa antes das sete é apelação. Principalmente quando se toma o derradeiro café com pão e se lança na rua pela última vez. Mas ela continua impassível. No mesmo lugar de sempre. Creio que à minha espera. Sessenta quilômetros por hora na grande avenida. Os primeiros raios furam as nuvens brilhantes como se nada tivesse para acontecer. As manhãs de Brasília são tão poéticas! O pôr-do-sol é retumbante, porém nem sei se vou ver outro fim de tarde neste fim de mundo. A rádio anuncia o desespero. Pessoas tomam as ruas, caminham para lá e para cá como formigas que perderam sua trilha. Há arrombamentos, saques, suicídios. Nada que não seja previsível em mais uma espera pela dizimação da espécie humana. Custo a crer que seja verdade. Agora é para valer. Será? Vou ouvindo e pensando e quase atravesso o sinal vermelho. Mas quem se importa nesta altura dos acontecimentos? Ninguém. E

Sobre a baixaestima coletiva

No jornal de hoje me deparo com a foto do presidente da Huyndai – uma das maiores empresas da Ásia – numa creche, vestindo um avental. Foi flagrado pelas lentes do fotógrafo ao dar mamadeira para um bebezinho. Que situação surreal para nosotros desse país tropical. O empresário septuagenário foi condenado por fraude e corrupção e, ao invés de ir para prisão, o judiciário sul-coreano determinou que ele cumprisse 300 horas de prestação de serviço à comunidade da qual ele deveria pensar 300 vezes antes de roubar. Aqui no Brasil nem isso acontece. Ninguém que tem poder vira um reles mortal pagando penitência. Ninguém com dinheiro é preso e muito menos tem de passar por essa expiação. As pessoas atropelam, matam e pagam seu crime com cestas básicas. Marcos Valério, ‘mensaleiro”, é condenado a pagar uma multa ridícula de dois salários-mínimos por se lambuzar com muita, muita grana pública. Está achando que isso é clichê? Não é não, meus caros. Eu trabalho no Judiciário e vejo as brecha

Nome de sucesso

Essa história me foi contada pelo agora ex-marido de uma amiga, há uns dez anos: Era uma vez um office boy que trabalhava numa agência publicitária de Brasília. A esposa dele estava grávida e ambos não sabiam que nome dar ao herdeiro. Impressionado com aquele ambiente criativo, descolado, elegante e bem-sucedido da agência na qual trabalhava, o boy tomou coragem e pediu sugestões de nomes para os redatores e diretores de arte que lhe pareciam tão inteligentes e poderosos. “Mas eu quero um nome de sucesso”, advertiu, com ênfase, o futuro pai. Rolaram diversos palpites, uma lista razoável de possibilidades. Os caras estavam felizes em poder contribuir para a escolha da alcunha da criança. Então, imaginem a surpresa dos publicitários da agência X quando o office boy , orgulhoso, apresentou a certidão de nascimento do filho: Ronicley. “Nossa, isso sim é um nome de sucesso!”, respondeu o ex da minha amiga. Pois é, todo mundo tem uma história de nome de sucesso para contar. A impressi

Mais estranho que a ficção*

Imagina a cena: você esbarra no shopping, às 18 horas de domingo, cabelo molhado, esbaforida, com a ex-terapeuta e o ex-psiquiatra sentados à mesa tomando um café. Não, não é roteiro do Woody Allen, mas bem que poderia ser. Já viajo nos diálogos sacados e sarcásticos que o bardo das neuroses urbanas inventaria para tal situação. No mínimo, embaraçosa. Afinal, ali estão as duas pessoas que conhecem de perto as suas sombras. Você está de frente para o crime que você cometeu. Qualificado. Também, quem mandou se tratar com um psiquiatra que é casado com uma terapeuta e vice-versa? Então você finge que não viu, volta para a escada rolante, faz que vai embora e retorna mais tarde? Não, o cinema já vai começar e, além disso, ela já te viu. Malditas mulheres! Sempre alertas, viciadas em assuntar com olhos de claraboia. Se fosse ele, o psiquiatra, passava batido. Continuava bebericando seu café focado apenas na sua xícara. Merda! - Oi Luciana! Ela vai se levantando em minha direção... (Me

Moral dessa história

“Ai de mim... sempre em mim...” (Clarice Lispector) Com mensagens edificantes em power point pululando na caixa de entrada dia sim e outro também, como não se sentir tentada a elaborar meu texto de autoajuda para amparar a mim mesma? É impressionante como as pessoas querem ser lidas, ouvidas, comentadas. Precisam desesperadamente dar “lições de vida”, contar suas histórias de superação. Andy Warhol foi mais esperto por visionar a necessidade de brilhar do ser humano (nem que seja por 15 minutos), do que por seu valor artístico (sem desmerecê-lo, porque gosto da pop art, mas a frase, sim, é definitiva). Portanto cá estou expondo experiências pessoais em conta gotas. Também sou cria deste tempo, né? Por isso quero contar que voltei a andar de bicicleta após quase um ano do acidente. Foi tão libertador e divertido quanto pode ser o vento no rosto com o sol quarando as costas, ou seja: não fiquei traumatizada com a minha bike. Um alívio perceber que as sequelas, neste caso, estão ap

Cenas implícitas

Outro dia estava reparando como meu filho de dez meses, sempre que chega à garagem do prédio, olha para todos os lados numa curiosidade e atenção incríveis. Parece que o guri vive uma eterna estreia, uma ininterrupta primeira vez. Esse olhar inédito dos bebês para o trivial é algo fantástico. E me leva a um postal publicitário que fica pregado na minha mesa de trabalho: “Denise Stoklos em Olhos Recém-Nascidos”. Caramba, como gosto do título deste espetáculo que nunca vi. É uma falha no meu currículo teatral: ainda não tive a oportunidade de assistir à multifacetada artista Denise Stoklos, snif. Mas o desenho no postal me lembra da necessidade de fechar os olhos e reabri-los inéditos na piscadela seguinte. Ver, olhar, mirar... Neste tempo da cegueira individualista e grosseira que corrói as pessoas nas cidades deste mundão de Deus, a gente precisa cultivar a pureza do olhar. Ter olhos recém-nascidos para levar a rotina com mais delicadeza. Acreditar no prazer de descobrir curiosida

"Zeróis"

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para Guti, Lara, Adriani, Marisa e  todos que colocam a mão na massa em ações do bem Enquanto me perco em delírios de grandeza (serei ou não serei descoberta como a garota no shopping que vira top model), o mundo carece de super heróis. Não os da Marvel, implacáveis e rígidos, mas sim os "zeróis" do Ziraldo: negros, velhos, angustiados, românticos, solitários, pensativos. Heróis de carne, de sonhos, de garra. Humanos, enfim. Nessa semana, recebi um email amedrontador. O Projeto Aconchego me convidava para participar do curso sobre “Apadrinhamento Afetivo”. Quando abri a caixa de entrada e vi aquele chamamento, meu coração gelou. Ai, caramba, no que fui que me meti? Impulsiva, estabeleci contato com eles no ano passado. O fantasma da ação solidária, do voluntariado me espreita há tanto tempo... Sempre à espera do momento ideal para sair de mim mesma e abraçar uma causa. Mas momentos ideias não existem. Os zeróis não inventam desculpas para si mesmos. Racionalizar o que v

Planetária

Há momentos na vida que a gente protagoniza cenas de globalização encantadoras. Porque ainda é raro no Brasil a gente experimentar essa sensação de aldeia global. Não se enganem, tupiniquins, a América do Sul permanece fim do mundo selvagem para a média da população mundial. Quem sabe agora, com a Copa as Olimpíadas, a gente consiga quebrar a resistência dessa turma e traga hordas de turistas estrangeiros para apreciar nossa alegria de viver (traço fundamental da identidade cultural do brasileiro, segundo Darcy Ribeiro e Luciana). Quando vivi em NY pude participar de perto dessa vida sem fronteiras. Pessoas de todos os lugares do mundo convivendo e se entendendo no verdadeiro esperanto: o inglês. Que me desculpem os desafetos dos Estados Unidos, mas não há língua mais tranquila de aprender do que to be or not to be. Todos os outros idiomas são demasiado complexos em conjugações, gêneros e graus. O inglês é prático e democrático, apesar de o Tio Sam nem sempre agir como tal. Mas e

Abre-te, Sésamo!

Amo de paixão essas fotos antigas do tempo da vovó e os retratos 3x4 de lambe-lambe. E também os eternizados nas carteirinhas estudantis. Inclusive já montei dois porta-retratos só com achados de fundo de gaveta. Aliás, fundo de gaveta é o mais sincero confessionário de uma pessoa. Diga o que você guarda ali do seu lado e eu te direi quem é. Mas essa ideia não é minha, é do Mário Prata, que escreveu um texto delicioso sobre o que ele escondia no criado-mudo. Se abrirem o meu, que tem três gavetas (imagina quanta inutilidade não fez morada ali) verão o problema com insônia estampado nas caixinhas de Remeron. Há também uma pomada alemã chamada Carmol, indicada para luxações e contusões. Tai, quem não me conhece vai pensar que sou hipocondríaca, o que é uma inverdade. Guardo ao lado da cama a canetinha com tampa de brigadeiro presenteada pela amiga Marisa e dois caderninhos de anotação: um rosinha do ursinho Pooh (denunciando meu lado romântico-lúdico) e outro cinza psicodélico vangua

Abaixo as tábuas de passar!!!!

Quando a tarde é tranquila na vida de uma mãe, a gente estranha. Estava de bobeira, um dormindo, o outro no período integral da terça-feira (ô bênção), então me joguei no sofá para zapear os canais a cabo. O problema é que nada de interessante passa – também - na TV fechada às três da tarde. No desespero, descobri que “Espelhos do Mal 2” tinha acabado de começar e fiquei ali tentando ver aquela porcaria. O original tinha grande apelo: Kiefer Sutherland. Gosto do jeito bruto Steve MacQueen dele. E a premissa do filme é até interessante (para quem gosta de suspenses como eu). Mas o que era aquilo... O samba do crioulo doido sangrento!!!! Mas quando já estava desistindo, uma frase salvou os minutos perdidos com tamanho lixo: “Eu já disse que não quero tamanhos grandes. A Mayflower precisa passar a impressão de uma boutique. E boutique, você sabe, são skin and bones.” Achei divina. Em poucas linhas, um resumo do mundo anoréxico das mulheres contemporâneas. Quem é da espécie sabe de c

Pepitas

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Esses objetos do desejo, os livros. Recuso-me terminantemente a crer que eles vão se acabar. Será? Será? Pergunto, relutante e arrogante, ao Bernardo enquanto folheio, embevecida, as novidades literárias da Livraria Cultura. Meu marido tecnológico afirma, com todas as letras gigantes, (Rômulo questionou à mesa do café por que as letras são pequenas, por que não há letras gigantes) que SIM! E eu quero responder: NÃO! (Do tamanho da imaginação sem amarras do caçula). Não posso admitir que os tais e-books vieram mesmo para substituir o prazer indescritível da folha de papel. Não tem volta? Não tem coexistência? Por que um tem de, obrigatoriamente, tomar o lugar do outro? Eu ainda acredito que esse alarde todo é mais uma dessas teorias da conspiração. Que os livros tradicionais vão continuar nascendo, crescendo e se multiplicando, talvez não na mesma velocidade ou pluralidade, mas na medida suficiente para manter os apaixonados por seu peso, cheiro, tamanho e cores, apascenta

Horizonte de eventos

“Sei, não, mas acho que meu pé não se ajusta a sapatinhos de cristal.” (da efervescente amiga Monalisa) “Pra quem não sabe amar, vive esperando alguém que caiba nos seus sonhos”. (Cazuza dizendo tudo as aways) “Estraçalha, Lu!” Sem mais nem menos voltei ao primeiro ano do segundo grau, fase de aventuras deliciosas. Adolescência... Hora da descoberta do mundo sedutor. Aquele em que você desfila com suas calças jeans apertadinhas e cabelão na cintura à espera dos olhares dos meninos encostados na mureta de proteção do corredor. Aos quinze anos mudei de escola. Saí de um ovinho de galinha para um ovão de avestruz. Quanto mais provinciano o lugar, menos chances tem uma menina exótica de brilhar. Então no novo colégio, “resplandeci”. Assim, numa conjugação inédita, licença poética da menina descobrindo o poder da mulher. Foi uma época muito divertida. Era a dona do mundo e do coração de alguns colegas da turma. Um deles, o Rodrigão, era metaleiro. Eu nunca havia convivido com um quas